
Neste artigo tentarei responder a seguinte questão: quais são os obstáculos que impedem o homem natural de se conformar à Lei Natural?
Ora, se existe uma lei natural que pode ser acessada e em certa medida obedecida pelos homens, trazendo-os assim a um estado de vida mais honroso, feliz e pacífico; quais seriam os obstáculos para esse florescimento que pode ser obtido pelas faculdades humanas?
Turretini nos explica como o homem natural apreende essa lei:
Ora, dentre essas noções, algumas são primárias (a que chamamos princípios), outras secundárias (chamadas conclusões). Os princípios são aqueles que (sendo de si mesmos conhecidos e em tudo inamovíveis, fundamentados no bem comum), pelo auxílio da razão, geram conclusões de si mesmos. Estes são reduzidos ao fundamento do bem comum; são ou mais próximos, imediatos e (como dizem) pertencentes ao primeiro ditame da natureza (os quais são proximamente deduzidos dos princípios e prontamente entream no conhecimento); ou mediatos e mais remotos (os quais pela consequência mais remota e com maior dificuldade são deduzidos dos princípios). Os primeiros não admitem nenhuma variedade; os segundos admitem uma grande variedade nesta natureza corrompida.
François turretini, compêndio de teologia apologética II.XI.XI.
Aqui Turretini separa aquele conhecimento natural que pode ser chamado autoevidente, do conhecimento (também natural) que é lógicamente deduzido daquilo que é autoevidente. E assim, quanto mais deduções forem necessárias para a construção de um determinado conhecimento, menos exato e inequívoco ele será – daí a necessidade de testar/provar todo conhecimento deduzido.
Mas veja, se só pudéssemos confiar no conhecimento autoevidente, jamais entraríamos num prédio de dez andares, pois nada ali é autoevidente. Da mesma forma, muito do que é feito num consultório de psicologia ou psiquiatria é (ou deveria ser) baseado em evidências, testes randomizados com centenas de pacientes e um conhecimento humanístico acumulado há mais de dois mil anos.
Na verdade, a técnica psicoterapêutica com maior eficácia na prática clínica nos dias de hoje, a Terapia Cognitivo Comportamental [TCC], consiste justamente em fazer com que o paciente se desfaça de conclusões/raciocínios chamados desadaptativos, que lhe são prejudiciais. Trata-se de uma ferramenta de enorme potencial, sobretudo nas mãos de um profissional que saiba o que vem a ser um homem virtuoso.
No entanto, existem outras barreiras ao uso apropriado da lei natural. Turretini continua:
[…] esta lei foi de muitas formas corrompida depois do pecado, pela corrupção natural, pela educação errônea [a tradução mais correta aqui seria “educação ruim”] e pelos costumes viciosos.
FRANÇOIS TURRETINI, COMPÊNDIO DE TEOLOGIA APOLOGÉTICA II.XI.XI.
Essa lista de “obstáculos” é muito comum e aparece em diversos tratados puritanos sobre a Lei Natural, como em Vindiciae Legis, do puritano Anthony Burgess. E o que quer dizer cada item dessa lista?
Ora, por corrupção natural, Turretini se refere à corrupção da natureza. Aqui poderíamos enumerar a fraqueza da razão e da vontade, como duas faculdades da mente que não operam como deveriam. Por vezes, não conseguimos distinguir o certo do errado, e ainda, por vezes, a vontade é tomada pelas paixões desordenadas, e não obedece ao que a razão estabelece como bom, justo, honesto e verdadeiro. Exemplo disso são as pessoas que sofrem com TOC, e verificam dezenas de vezes se fecharam a porta de casa ao sair ou ainda quando imaginam que toda sua família morrerá se ela não contar todos os carros que encontrar na rua. Também poderíamos citar aqui o próprio processo de envelhecimento, o qual muitas vezes leva a um estado demencial em que a memória, a corrdenação motora e a cognição estão prejudicas. Eis a nossa natureza! Ela mesma é o principal obstáculo para compreendermos a lei natural. Mesmo se passamos uma vida inteira mais ou menos nos conformando a essa lei, podemos chegar na velhice e esquecê-la completamente. A Graça reside no fato de que Deus nunca se esquecerá de nós!
Quanto à influência de uma educação errônea [ruim] é fácil perceber como isso, muitas vezes, impede as pessoas de conhecerem a verdade das coisas. Poderíamos citar o exemplo da educação nazista, da educação comunista, da educação proposta por Paulo Freire no Brasil etc. São todas filosofias de educação que, na história, impediram a prudência e a sabedoria de crianças e jovens que foram moldados para compreender o mundo em termos de uma ideologia política. Por outro lado, podemos citar aqui também as crianças que não têm acesso a nenhum tipo de educação. Na psiquiatria, dizemos que essas crianças estão “queimando imprint”, ou seja, estão disperdiçando etapas essenciais para o seu neurodesenvolvimento e florescimento pessoal e, assim, jogando fora o potencial inato que lhes fora dado por Deus.
O Reformador Pietro Vermigli também compartilha dessa mesma idéia quando escreve sobre a relação entre virtude e educação:
Pois, se não houver nenhum estudo de leis e moral e nenhuma disciplina de educação, nós não desenvolvemos nossa mente na virtude.
Peter martyr vermigli, commentary on aristotle’s nicomachean ethics, pml vol.9, p.55.
Por fim, Turretini fala também dos costumes viciosos. E o que seriam? O vício, na concepção aristotélico-tomista na qual o autor está inserido, seria qualquer hábito essencialmente ruim, ou seja, um costume inerentemente prejudicial para o homem. São inúmeras as relações entre vícios e transtornos mentais; aqui falamos não somente do álcool, do cigarro e outras drogas ilícitas, mas também da comida, do sexo e até mesmo de jogos. Todo vício entorpece em maior ou menor grau os sentidos e as faculdades superiores do homem – ou seja, a razão e a vontade.
No próximo e último artigo da série tratarei do lugar da culpa na psicologia e como isso se relaciona com a Graça (nesse caso, para aqueles de nós que cremos nela).
Excelente publicação.
Bastante esclarecedora.
CurtirCurtir