Nesse pequeno artigo gostaria de defender a tese de que São Bernardo fora de fato um tipo de psicólogo patrístico-medieval (ele é considerado o último dos patrísticos). É claro que ele não poderia ter sido um psicólogo no sentido moderno do termo, pois a própria ciência moderna ainda não existia. Mas o conhecimento certo, preciso e verificável da verdade transcende a ciência moderna.
Vejo São Bernardo como um psicólogo por dois grandes motivos: (1) ele distingue em sua obra, Os graus da humildade e da soberba, 12 níveis de vida interior no homem, como se fossem 12 estados, digamos assim, de amadurecimento pessoal. E (2) ele faz isso por meio da observação do comportamento humano. Ora, é exatamente isso que se faz num exame psicopatológico; observamos o homem para daí encontrarmos os vícios e paixões (pathos) da sua alma (psyche).
Veja o leitor como ele descreve o homem acometido de curiosidade:
se vês um monge que diante de ti desfrutava de boa reputação, e que todavia agora, em qualquer lugar em que esteja, em pé, andando ou sentado, não faz senão olhar para todas as partes com a cabeça sempre erguida, aplicando o ouvido a todo e qualquer rumor, podes coligir de tais gestos do homem exterior que o homem interior sofreu uma mudança. “O homem perverso”, com efeito, “pisca o olho, move os pés, aponta com o dedo” [Pv 6:12-13]. Por tais estranhos movimentos do corpo, podes advertir a incipiente doença da alma. E a alma, que por seu desleixo se vai entorpecendo quanto a cuidar de si mesma, torna-se curiosa quando se trata das coisas dos demais.
São Bernardo de Claraval, Os graus da humildade e da soberba, Editora Concreta 2016.
Ora, o que é que denuncia a doença da curiosidade no homem? São os movimentos do corpo, os olhares, o discurso, os pés, as mãos, e até o movimento do pescoço que se ergue a procurar aquilo que não lhe diz respeito. São Bernardo diz que por esses movimentos podemos perceber “a incipiente doença da alma“, ou seja, o vício que começa a desabrochar na flor do coração humano. Que perspicácia tinha o santo!
Mas para conhecer os vícios é preciso treinar os olhos, os nossos próprios olhos. Como podemos saber se estamos entregues à curiosidade? Ora, quando deixamos de cuidar de nós mesmos e buscamos resolver problemas que não nos pertencem. Queremos opinar sobre a última notícia do momento e sobre questões de pessoas que estão a distâncias de nós. A título de exemplo, enquanto escrevo esse artigo, me deparo com dezenas de comentários vagos e inúteis sobre a possível saída de um membro do governo, que nem mesmo ainda se confirmou mas já foi dada como coisa certa e factível, motivo para crucificar os envolvidos mesmo sem conhecimento de causa. O que é isso, senão a curiosidade corroendo a humanidade?
Assim continua São Bernardo:
Desconhece-se a si mesma [a alma], com efeito, e por isso é lançada fora para que apascente os cabritos. […] O curioso, com efeito, entretém-se em apascentar tais cabritos, ao passo que não se preocupa com conehcer seu próprio estado interior.
São Bernardo de Claraval, Os graus da humildade e da soberba, Editora Concreta 2016.
O que se perde com o coração tomado pela curiosidade? Se perde o cultivo da própria vida e alma, e a resolução dos seus próprios conflitos e dilemas. Lá se vai o seu tempo, seu amadurecimento e sua prosperidade. Você deveria estar acumulando virtudes, forças e habilidades, mas está perdendo tudo isso. E por que perdendo? Porque nessa escada não é possível se manter parado. Você está sempre descendo ou subindo, é o que diz São Bernardo.
Devemos nos perguntar então pelo remédio para tal enfermidade moral… Ora, o remédio não é outro senão apascentar os próprios pensamentos. É a centralidade da psyche. É necessário assumir esse auto-compromisso com a vida interior, do contrário toda a nossa vida será uma mera reação e nunca um ato autêntico de amor. E assim, deixaremos de refletir a imagem do próprio Deus – aquele que é ato puro e, por isso, é perfeito e eternamente feliz em Si mesmo.
Que fiquemos com os conselhos de São Bernardo:
Curioso, escuta a Salomão; escuta, néscio, ao sábio: “Acima de toda custódia, custodia teu coração” [Pv 4:23], de modo que todos os teus sentidos vigiem a fim de custodiar aquilo de onde brota a vida. Curioso, aonde vais quando te afastas de ti? A quem te confias durante esse tempo?
São Bernardo de Claraval, Os graus da humildade e da soberba, Editora Concreta 2016.