Faz tempo que as pessoas me pedem por uma explicação, um texto ou algo parecido, explicando minha “conversão” do puritanismo (congregacional batista) para o luteranismo. Então, o que se segue é uma resposta aos anseios de alguns amigos e pessoas queridas que gostariam de entender melhor minha fé.
Antes de mais nada, gostaria de dizer que se você espera um texto polêmico e apologético, pode fechar a página do blog. Trata-se apenas de um relato bastante sucinto, no qual eu desejo falar de cada elemento teológico-espiritual que esteve me influenciando durante todo o caminho até aqui.
Conhecendo a tradição reformada
Apesar de sempre ter sido um ávido leitor de literatura reformada, nos últimos três anos eu conheci autores que mudaram completamente minha perspectiva sobre a tradição reformada (com a qual eu me identificava profundamente). O que todos esses autores tinham em comum? Todos eles eram discípulos diretos ou indiretos do grande teólogo reformado Richard A. Muller.
Muller trouxe um renovo para a academia reformada. Ele esteve por trás de grandes mudanças na maneira de compreender a tradição reformada e a própria tradição da Igreja, como um todo. Ele desmascarou completamente aquela velha idéia de Calvino vs calvinistas, Reforma vs escolástica tardia, e também esteve por trás do redescobrimento do teísmo clássico, presente em absolutamente todas as confissões de fé reformadas, mas negado por muitos teólogos reformados modernos. Em resumo, Muller foi um dos grandes responsáveis por um novo ressourcement na tradição reformada.
Ler Muller e seus discípulos me fez perder o medo de estudar a fundo a história da igreja, conhecer o escolasticismo reformado e protestante, e finalmente, me ajudou a perceber que a Reforma foi um desenvolvimento natural da Igreja da idade média tardia e não uma revolução, como muitos fazem parecer. Mais do que isso, percebi que a tradição reformada era muito mais plural do que eu imaginava. A teologia de homens como Zanchi, Vermigli e Bucer não se encaixa numa Confissão de Fé de Westminster, muito menos numa Confissão de Fé de Londres (1689).
Pedobatismo
Talvez essa tenha sido uma das questões mais difíceis de aceitar. Como um bom batista reformado, eu li praticamente todos os melhores livros sobre credobatismo e pedobatismo, e sempre achei os argumentos presbiterianos muito fracos (raras exceções, ainda acho rs). Foi quando me deparei com duas questões intrigantes:
1 – A Teologia do Reino. No Novo Testamento a Igreja é a expressão visível do Reino de Deus na terra (Mc 4:30,34; 10:15; Lc 17:21; Mt 21:43; Ap 5:10). E esse mesmo Novo Testamento diz que o Reino de Deus pertence às crianças (Mt 19:14; 1Co 7:14). Mais do que isso, as Escrituras se dirigem às crianças, chamando-as de Igreja (Ef 6:1; 1Jo 2:14 – veja que as epístolas são dirigidas a igrejas, e não a igrejas e seus filhos. Esta distinção não é bíblica). Como eu nunca tinha percebido isso antes? Não é lógico? Até mesmo batistas tratam seus filhos como verdadeiros crentes no Senhor. As crianças participam dos cultos, cantam hinos, escutam a Palavra e ainda ORAM! Como alguém que ora e chama Deus de papai não pertence ao Reino de Deus? Isso definitivamente não faz nenhum sentido!
2 – A Teologia da Aliança. O argumento bíblico da teologia da aliança é insuficiente para estabelecer uma doutrina tão importante quanto o batismo. Não é assim que se estabelece uma doutrina. Ainda mais num tema tão controverso quanto a teologia da aliança. Mesmo dentro do meio batista-reformado existe uma pluralidade de opiniões sobre a estrutura pactual das Escrituras. Basta comparar as diferentes opiniões de John Bunyan, John Spilsbury, Nehemiah Coxe. Ou mesmo hoje, compare as diferentes opiniões de Sam Waldrom, James Renihan e Jeffrey Johnson. Existe mais discordância do que muitos estão dispostos a reconhecer, e isso também é verdade no presbiterianismo.
Princípio Regulador vs Princípio Normativo
Outra guinada em minha espirituaidade foi quanto à questão do culto. Foi o grande teólogo anglicano (e reformado) Richard Hooker quem me convenceu de que o Princípio Regulador é uma leitura extremamente forçada e enviesada do texto bíblico. E isso, por quê? Porque as Escrituras não tratam dos aspectos humanos do culto – pelo menos não diretamente. Não é pecado per se orar de olhos fechados ou abertos, congregar numa catedral ou debaixo de uma árvore, usar instrumentos ou cantar a capella, usar toga ou batina, congregar em determinados dias ou não, separar certos dias ou não, fazer uma liturgia cantada ou lida, e etc. Não é que essas coisas são indiferentes e sem importância. Mas praticá-las ou deixar de praticá-las, em si mesmo, não é errado.
Richard Hooker, em sua famosa obra The Laws of Ecclesiastical Polity, combate os puritanos radicais de seu tempo, e o faz de modo magistral e impecável, demonstrando que a Igreja é uma sociedade divina e humana. Logo, algumas leis são puramente de iuris humani, isto é, leis puramente humanas, não divinas. E a Igreja, ao longo dos séculos, desenvolveu sua própria tradição, sua própria cultura moldada pelas Escrituras, seu heróis (os santos), seus dias de celebração (para a memória dos santos e dos atos redentivos de Deus na história), o tesouro da liturgia histórica e os costumes (como fazer o sinal da cruz). Tudo isso é maravilhoso, relevante e extremamente edificante. No entanto, não pecamos se deixamos de fazer todas essas coisas. O problema é que sempre que deixamos de fazê-las, começamos a colocar outras coisas no lugar, e daí, deixamos a cultura secular invadir a Igreja.
E onde está o aspecto divino da Igreja? Está no mistério, no Evangelho e nos Sacramentos, naquilo que Deus faz. É Deus quem converte o pecador. É Deus quem batiza. É Deus quem está presente corporalmente nos Sacramentos. É Deus quem inspirou as Sagradas Escrituras. Não podemos alterar essas coisas, jamais. Podemos pregar com ou sem microfone, podemos usar muita água ou pouca água no batismo, podemos utilizar hóstia ou pão comum, vinho tinto ou seco, mas nada disso poderá mudar o mistério divino.
Mas então quer dizer que podemos fazer qualquer coisa no culto? É óbvio que não! O que o Princípio Normativo do Culto ensina é que devemos lançar mão dos princípios gerais das Escrituras e da Lei Natural para desenvolvermos o nosso culto a Deus, e é claro, sem jamais ferir a Palavra de Deus.
Nem reformado, nem luterano
Depois de ler o livro IV das Laws de Hooker, eu estava completamente perplexo. Comparei o que li ali com François Turretini, Calvino, Ames, e não encontrei nenhum teólogo que refutasse os argumentos de Hooker.
Mas de onde Hooker retirou essas idéias? O próprio Hooker admite a influência das Igrejas Germânicas (Luteranas) sobre o seu pensamento. Ele diz que neste ponto, os ingleses deveriam imitar a reforma conservadora de Lutero, que procurou reformar apenas a doutrina e aquilo que era escandaloso na missa papal. Foi aqui que voltei os meus olhos pela primeira vez para esta Igreja a que apelidaram de luterana, e que promoveu uma reforma conservadora.
Durante esse período me senti tentado a abraçar o anglicanismo, mas não conheci nenhuma Igreja Anglicana conservadora no Brasil. A maioria eram carismáticos (o que rejeito), e além disso também eram inclusivistas, defendiam ordenação feminina, casamento gay e todo tipo de lixo moderno. Esse com certeza foi um dos motivos que me levaram a estudar o luteranismo com mais interesse. Eu queria uma reforma conservadora, uma Igreja do Evangelho, mas que fosse Católica em sua estrutura e liturgia.
Na próxima parte desse artigo irei tratar da Ceia do Senhor, e de como estudar a Cristologia da Igreja Antiga foi fundamental para que eu me tornasse um luterano.