Como prometido, aqui vai a parte dois do breve relato de minha jornada espiritual para o Luteranismo. Nesse artigo tratarei dos finalmentes doutrinários que me fizeram decidir pela tradição luterana, e não pela anglicana, ou por um tipo de espiritualidade reformada menos puritana.
Lendo as Escrituras com os Pais da Igreja
Uma das coisas que também aprendi com Richard Hooker foi ler as Escrituras com e como os Pais da Igreja. E o que isso significa?
- Com os Pais da Igreja: isto é, dar ouvidos aos Pais da Igreja. Certa feita eu disse a um jovem dispensacionalista que me criticava por eu apelar ao testemunho dos Pais: “Se eu não devo dar ouvido aos Pais da Igreja, por que eu deveria dar ouvidos a você?”. Nós estamos o tempo todo lendo livros, assimilando informações, pregações, pré-conceitos espistêmicos culturais, e etc. Por qual motivo nós não deveríamos ler as Escrituras junto com os Pais da Igreja!? Sobretudo com aqueles que estiveram tão próximos da pregação apostólica viva vox!? Algum consenso e alguma luz eles podem nos fornecer.
- Como os Pais da Igreja: talvez esta seja a parte mais importante do tópico. Apesar de todas as controvérsias e discussões em que estiveram envolvidos, todos eles tinham uma coisa em comum; acreditavam na clareza das Escrituras quando o assunto era a Doutrina Cristã. E quais as implicações dessa postura hemenêutica? O trabalho teológico se dava em cima de tópicos das Escrituras, e não em cima de sistemas de doutrinas. Por exemplo, se os textos x, y e z são claros a respeito de determinada doutrina, não devemos abrir mão desta doutrina, ainda que ela pareça conflitar com outros textos das Escritura. Daí a quantidade de tensões doutrinárias na Patrística. As tensões estão aí e elas devem ser respeitadas, pois elas são fruto de um equilíbro hermenêutico saudável. Devemos resistir o ímpeto primário de negar as tensões, para que elas se amoldem à nossa compreensão limitada e sitematizada.
Regeneração Batismal
Este tópico já foi tratado por mim com citações e textos bíblicos, e pode ser acessado aqui.
Não é segredo para nenhum estudioso mediano de história da Igreja o fato de que existia mais consenso na Patrística sobre regeneração batismal do que sobre a doutrina da Trindade. Percebem o peso da clareza das Escrituras aqui? Haviam muitas discussões sobre questões acidentais à doutrina do batismo, mas não sobre o seu significado.
A regeneração batismal é uma dessas tensões que devem ser respeitadas. E neste momento o meu leitor já deve estar querendo se esquivar dessa tensão, e deve estar se perguntando “mas não é pela fé somente que recebemos a Graça de Deus?”. Sim, mas onde está a contradição? O Batismo opera perdão dos pecados porque ele gera a fé em nós. A fé não é um hábito natural, mas é um dom sobrenatural. Vem de Deus, e não de vós (Ef 2:8,9). Por isso é que devemos batizar crianças, para que elas tenham fé e sejam lavadas da mancha do pecado original. Porque é impossível que tanto o adulto quanto a criança, por sua própria vontade e força, tenham fé. Mas Deus nos concede exatamente isso no batismo.
E se retiramos esta realidade sobrenatural do batismo? Não sobra absolutamente nada. Ele se reduz a uma mera “ordenança”, termo utilizado na Confissão de Fé de Westminster e na Confissão de Fé de 1689. Esta tendência de chamar o batismo de ordenança não tem seu início com os batistas, mas com aqueles primeiros reformados que começaram a negar a própria essência do batismo. Veja, meu leitor! Por qual motivo Cristo exigiria que cada um de seus discípulos se lavassem em nome da Trindade, se este lavar não fosse sobrenatural? Qual a lógica por trás disso? O batismo ordenança, o batismo esvaziado, é um mero cumprimento de dever. Por isso é tão difícil que batistas e reformados entendam que o batismo não é Lei, mas sim Evangelho.
O Sacramento do Altar
Finalmente, chegamos no momento de separar o joio do trigo, o momento mais especial de toda essa jornada. E quanto ao testemunho histórico sobre a Eucaristia, eu fiz as seguintes constatações:
- Até o século XVI a Igreja nunca havia confessado nada parecido ou semelhante ao memorialismo e sua versão calvinista, a “presença espiritual”.
- A doutrina católica romana da transubstanciação só começou a ser confessada no séxulo XI, sendo finalmente elevada a artigo de fé no século XIII com o suspeitíssimo Papa Inocêncio III. E esta mesma doutrina, desde o seu surgimento, sempre recebeu oposição de todos os lados, especialmente da Faculdade de Paris.
- A posição luterana quanto ao Sacramento do Altar é a única que pode concordar com os três testemunhos mais antigos da história da Igreja: Inácio, Irineu e Justino Mártir.
Em sua carta à igreja de Esmirna, fazendo uma referência aos docetistas, Santo Inácio diz que eles se abstinham da Ceia do Senhor, pois se recusavam reconhecer que “é a carne de nosso Redentor Jesus Cristo” [Epistle to the Smyrneans 6:2]. Isto parece indicar que a Igreja, desde o início, realmente entendia que discernir o corpo de Cristo signifca discernir o corpo de Cristo, e não outra coisa. É exatamente isto que os luteranos exigem ainda hoje, em pleno século XXI, daqueles que desejam participar do Sacramento do Altar. Percebam! Este é o testemunho de um Pai da Igreja que foi instruído diretamente pelos apóstolos.
Por sua vez, Irineu confessa exatamente a mesma compreensão luterana. Ele diz “Assim como o pão que vem da terra, ao receber a invocação de Deus, já não é pão comum, mas a Eucaristia, feita de dois elementos, o terreno e o celeste […]” [Against Heresies III,3]. Ou seja, mesmo após a consagração estão presentes pão e corpo, vinho e sangue. Seria Santo Irineu um luterano? Aposto que darão um jeito de torná-lo papista.
E finalmente, São Justino Mártir, “Não tomamos essas coisas como pão comum ou bebida ordinária… Mas assim nos foi ensinado que é a carne e o sangue daquele mesmo Jesus Encarnado.” [First Apology 66]. Das três, esta é a citação que cabe alguma especulação. Havia muita especulação sobre como a carne e o sangue do Senhor estavam presentes. No entanto, nenhum luterano teria dificuldade em afirmar essas palavras.
Toda essa conversa poderia ser facilmente resolvida se atentássemos para o sentido mais natural e simples das seguintes palavras: Isto é o meu corpo. São as últimas palavras de Cristo, o seu testamento. Ele não estava falando por parábolas para uma multidão, como quando disse “Eu sou a porta“, “Eu sou o caminho“, etc. Não! Nada disso! Ele estava num lugar fechado e em particular com os seus, os discípulos esperavam provar um cordeiro, e então ele aponta para os elementos e diz “Hoc est corpus meum“. E a partir daí os seus discípulos sempre entenderam isso mesmo, que estavam comendo o corpo de Cristo.
Qual a única objeção plausível que fizeram a esta doutrina tão simples? Me disseram que as coisas não poderiam ser assim, pois Cristo está no céu, e não na terra (durante algum tempo este foi o único argumento que me fez resistir). Alguns chegaram até a usar Lc 17:23 para dizer que Cristo já havia profetizado sobre o engano da presença real. Tragicômico! Foi então que deixei o assunto da Ceia por um momento e me voltei para a Cristologia ortodoxa e ecumênica da Igreja, a Cristologia de São Cirilo de Alexandria, e fiz a seguinte pergunta: com base nesta Cristologia poderíamos afirmar que Cristo está presente na Eucaristia?
Communio naturarum e Communicatio idiomatum
A pergunta anterior poderia ser facilmente respondida com um sim, pelo simples fato de que São Cirilo se vale da presença real da Eucaristia para contrapor Nestório e Teodoreto. Mas antes de transcrever esta citação aqui, vamos ao conceito de Communio naturarum.
Com communio naturarum, a Igreja queria dizer que na união hipostática há uma comunhão entre as naturezas humana e divina de Cristo. E o que vem a ser esta comunhão? Para explicar esta comunhão, São Cirilo compara a união hipostática com a união do ferro com o fogo (num pedaço de ferro incandescente), e com a união da alma com o corpo. E por quê? Ora, assim como o fogo penetra o ferro, mudando sua cor e até sua forma, e assim como a alma dá a forma do corpo (conceito aristotélico), da mesma forma, ao ssumir a natureza humana, o Verbo Divino a ilumina completamente, comunicando-lhe seus atributos, e daí também podemos confessar uma communicatio idiomatum na união hipostática, ou seja, que há uma verdadeira comunicação de propriedades de ambas as naturezas na pessoa de Cristo.
Muita filosofia, talvez o leitor esteja pensando. Fiquemos então somente com as palavras da Escritura, “Porque nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Cl 2:9). A plenitude da divinddade não habita em Cristo como habita nos santos. Cristo não é portador da plenitude da divindade. Sua natureza humana não é portadora da natureza divina. O seu corpo é um corpo divino. Quando as pessoas lhe tocavam, tocavam o próprio Deus, não por título somente (como alguns reformados argumentaram no século XVI), mas porque o corpo que tocavam era o corpo de Deus, e isso mesmo antes de sua ascenção.
São Cirilo diz numa de suas réplicas “não é o corpo de um homem comum como nós que é oferecido, de acordo com nossa crença. Antes, é o corpo e o sangue que se tornou propriedade do Verbo que dá a vida a todos.” [Réplica de São Cirilo referento ao seu 7º Anátema e a Declaração Oposta de Teodoreto]. Vejam! Corpo e sangue, que são propriedades da natureza humana, também se tornaram propriedade do Verbo (da natureza divina).
Se é assim, é claro que não podemos aplicar as leis da natureza ao corpo do Nosso Senhor. Pois o seu corpo é divino. Este homem é Deus!
Por fim, é necessário reconhecer que em nenhum lugar as Escrituras afirmam que Cristo está preso no céu, porque as Escrituras não conhecem um lugar físico chamado céu. Cristo é e está onipresente, de maneira oculta, como prometeu que estaria até a consumação dos séculos. Ele não disse que estaria conosco em Espírito, ou somente com sua natureza divina. Esta distinção não é bíblica, e sim nestoriana. Portanto, devemos reconhecê-lo como Totus Christus, ainda que de maneira oculta. É o que registra São Lucas, “E, quando dizia isto, vendo-o eles, foi elevado às alturas, e uma nuvem o recebeu, ocultando-o a seus olhos.” [At 1:9]. Ora, a nuvem, em toda a Bíblia, é símbolo da presença gloriosa de Deus com o seu povo, como em 2 Cr 5:14, Is 6:4 e Êx 40:34. Cristo quer ser reconhecido de maneira oculta no Sacramento do Altar. Esta é verdade bíblica. Esta é verdade confessada pelos Pais e pela Igreja da Reforma. Esta é a verdade que dobrou minha razão.
FINIS