O texto que se segue não é nada original. Todas as idéias e citações que se seguem foram extraídas da seção III do Tópico XVIII da Loci Theologici de Johann Gerhard, inclusive a ordem na qual os subtópicos foram arranjados. Se eu tentasse ser original aqui, miseravelmente falharia em lidar com este assunto, assim como falham aqueles que pensam ter descoberto uma nova heresia, quando na verdade estão apenas repetindo idéias passadas. Mas uma coisa eu posso fazer – posso tentar explicar o texto de Gerhard de forma que o seu conteúdo fique mais claro para o leigo.
Se Cristo fez Satisfação somente pelo Pecado Original
Que Cristo fez satisfação somente pelo pecado original era uma opinião razoavelmente comum entre os escolásticos medievais. Trata-se mais de um desenvolvimento da teologia sacramental escolástica, do que de um desenvolvimento da soteriologia propriamente dita. Assim como a ideia de sacrifício espiritual foi se transformando na ideia de sacrifício incruento da missa, também a antiga penitência canônica, que visava somente a disciplina e a restituição do próximo, foi se transformando na ideia de satisfação diante de Deus.
Isto, vemos, por exemplo, em Tomás, quando ele afirma que “assim como o corpo de Cristo no altar foi oferecido uma vez sobre a cruz, ele é oferecido continuamente por nossas transgressões diárias” (Opuscul. 58, de sacram. altars, ch. 1). Boaventura também escreve: “um ser humano pode fazer satisfação pelo seu próprio pecado atual, mas não pelo pecado original. Pois ninguém poderia fazer satisfação pelo pecado original, exceto Cristo, Deus e homem. Em relação ao pecado atual, um homem puro, ajudado pela graça, pode fazer satisfação, mas apenas uma satisfação semi-completa, que recebe suplemento e cumprimento da Paixão de Cristo” (Sent., 3, dist. 20, q.3). Andrea Vega, por sua vez, teólogo espanhol de destaque no Concílio de Trento, chegou a afirmar: “os méritos de Cristo não merecem o título de perfeita satisfação” (In Concil. Trid., vol1, fol. 141).
No entanto, abundam as provas na Escritura, na Tradição e na Razão, de que Cristo fez satisfação também pelos pecados atuais:
(1) Quando a Escritura lida com a satisfação de Cristo pelos pecados, ela sempre fala em termos gerais, e nunca faz qualquer tipo de separação entre pecado original e atual. Não existe qualquer texto que aponte para a ideia de que Cristo tenha feito satisfação somente pelo pecado original. Quando São João Batista afirmou “Eis o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo!” (Jo 1:29), ele não queria dizer “Eis o cordeiro de Deus que tira o pecado original do mundo”. Isto não está no texto. É tão forçoso quanto a tentativa calvinista de fazer o termo “todos” significar “todos os tipos de pessoas” mesmo quando o texto é taxativo na universalidade da expiação. Sobre este texto [Jo 1:29], Johann Gerhard faz o seguinte comentário: “Aqui o pecado é dito no singular, podendo ser entendido de modo universal: tudo que possui a natureza de pecado, toda a massa de pecado, a escória de todos os vícios do mundo foi transferida para Cristo, e quitada por Ele” (Loci, XVIII.VIII, §119). Gerhard cita o próprio Belarmino, ferrenho defensor da doutrina contrária, o qual confessa: “Quando a Escritura fala absolutamente sobre pecados, geralmente, entende-se, e assim deve ser entendido, como referindo a todos os pecados” (De poenit., bk.3, ch.4, col.1359).
(2) A Escritura fala claramente de Cristo fazendo satisfação pelos pecados atuais, especificamente. Assim diz o Bendito Profeta Isaías: “Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas; cada um se desviava pelo caminho, mas o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de nós todos” (Is 53:6). Quando ele diz que “cada um se desviava pelo caminho“, ele se refere especificamente sobre o pecado da desobediência de Israel, ou seja, um pecado atual, e não o pecado herdado dos primeiros pais (original). E quem fez satisfação por esse pecado? Ora, “o Senhor fez cair sobre ele [Cristo] a iniquidade de nós todos“.
(3) Cristo fez satisfação por tudo que a Lei condena e amaldiçoa, como está escrito “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldição em nosso lugar (porque está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado em madeiro)” (Gl 3:13). E visto que a Escritura também afirma que é “Maldito todo aquele que não permanece em todas as coisas escritas no Livro da lei, para praticá-las” (Gl 3:10), segue-se que Cristo teve que fazer satisfação por todos os pecados, desde a menor infração da Lei até a maior.
(4) Sobre o argumento do mérito, assim diz Gerhard: “A satisfação de Cristo é de preço e valor infinitos por conta da infinidade de Sua pessoa. Portanto, claramente, ela é suficiente para todos os pecados sem exceção” (Loci, XVIII.VIII, §119.V).
(5) Por fim, entre os Pais, encontramos Santo Agostinho: “Pela sua própria morte, que é o único e verdadeiro sacrifício oferecido por nós, Cristo purificou, absolveu e extinguiu o que havia de culpa, pela qual os principados e potestades reclamavam com direito para a expiação em suplícios” (De Trin., IV, ch. 13). E o mesmo afirma ainda mais claramente em outro lugar: “Em Cristo, em quem todos somos justificados, recebemos a remissão dos pecados, e não apenas do original, mas também de todo o resto que acrescentamos à ele” (De peccat. remissione, ch.13); e ainda: “Pelo derramar de Seu sangue sem culpa, o escrito de todas as faltas foi apagado” (De peccat. remissione, bk.2, ch.20). Além disso, Santo Agostinho chama a Paixão de Cristo de “o único sacifício que nos purifica de todos os pecados” (De civ. Dei, bk.7, ch.31). Para acrescentar, segue-se também o testemunho de outro grande Doutor da Igreja, Santo Anselmo, que diz: “Em seu próprio sangue, Cristo não alcançou redenção temporal, mas a redenção eterna de tudo, uma vez que o preço pago foi tão grande que encontrou eterna liberdade para os redimidos. Pois ele purificou tanto o pecado original quanto os pecados atuais, apresentou cada justificação e abriu o reino do céu” (on Hebrews 9).
Conclusão do tópico
Por tudo isso, fica patente a falta de provas bíblico-teológicas daqueles que tentam afirmar que Cristo só rendeu satisfação pelo pecado original. Apela-se à razão? Também ali não encontramos nenhum argumento convincente. Apela-se à Tradição? Se olhamos para os primeiros séculos, o conceito de “satisfação” ali empregado na penitência é completamente díspar do uso que é feito pelos escolásticos medievais e pela igreja do Concílio de Trento. A satisfação era mais como uma orientação pastoral para satisfazer a disciplina da Igreja e a justiça para com o próximo – isto é ensinado na Bíblia e praticado na Igreja Luterana. Por outro lado, vimos como Santo Agostinho e Santo Anselmo, dois gigantes, negam completamente a ideia dos adversários.
É por esse motivo que nós luteranos não cremos em qualquer satisfação humana coram Deo. Quando exigimos alguma satisfação de alguém que deseja ser batizado em nossas comunidades, essa satisfação é coram mundo. A pessoa deve demonstrar para a Igreja e para o mundo que ela se arrepende dos seus pecados, e que deseja levar uma vida na nova obediência, conforme ensina a inalterada Confissão de Augsburgo. Também é por isso que não cremos no Sacramento do Altar como uma repetição do único e verdadeiro sacrifício (palavras de Santo Agostinho). Antes, fazemos distinção entre a satisfação alcançada por Cristo na Cruz e a distribuição desta satisfação nos sacramentos – o que também nos distingue da maioria dos protestantes. Sendo assim, quando chamamos a Santa Ceia de sacrifício, fazemo-lo no sentido de sacrifício espiritual, como a Bíblia também faz (1 Pe 2:5).
Secunda pars sequetur…