O texto que se segue foi extraído do livro A Case for Character: Towards a Lutheran Virtue Ethics de Joel D. Biermann, teólogo contemporâneo que ocupa a cátedra de Teologia Sistemática do Concordia Seminary em St. Louis. Inspirado no grandioso After Virtue de Alasdair MacIntyre, Dr. Biermann defende que não há qualquer contradição entre a teologia luterana com seu sola fide e a ética das virtudes com seu incentivo à formação do caráter virtuoso. Mais do que isso, o autor oferece uma estrutura teorética legitimamente luterana que nos ajuda a entender como é possível preservar a centralidade do Evangelho na santificação, sem que tenhamos que cair numa ética que se reduza à motivação (gratidão pelo Evangelho). Biermann nos alerta para o fato de que a sociedade ocidental não sofre mais opressão de nenhuma estrutura religiosa. O pêndulo do pecado estrutural agora está direcionado para a libertinagem e a devassidão, e, infelizmente, muitos teólogos e pastores são completamente incapazes de falar sobre virtude, ética, progresso, santificação, etc.
Felizmente, tem surgido um interesse renovado na Ética das Virtudes, que se consagrou como a ética ocidental, a ética aristotélico-tomista. E no que diz respeito à Aristóteles, Dr. Joel Biermann é categórico em afirmar que sua ética é aprovada pela Confissão de Augsburgo, pela Apologia, e pelas obras dos principais pais da tradição luterana. Sendo assim, é necessário que nos dispamos de qualquer pré-conceito em relação ao uso da filosofia aristotélica per se.
Segue-se o texto:
Os Três Tipos de Justiça: Lutero e Melanchthon
Poder-se-ia fazer o esforço de distinguir essas duas variedades de “dois tipos de justiça”, chamando uma de “dois tipos de justiça de Lutero” e a outra de “dois tipos de justiça de Melanchthon”. No entanto, isto não seria muito preciso, visto que, às vezes, uma pode operar dentro da outra. Uma maneira melhor de esclarecer o assunto pode ser impor uma sistematização mais precisa e falar de três tipos de justiça. Convenientemente, Lutero faz exatamente isso num sermão em 1518: “Três Tipos de Justiça”. Nesse sermão, o reformador une três tipos de pecado (criminal, original e atual) com três respectivos tipos de justiça (externa, alheia e ativa). A primeira categoria, a justiça externa, não tem nada a ver com os cristãos: “Em segundo lugar, ela não serve a Deus, mas a si mesma; não é a justiça dos filhos, mas a dos escravos; não é uma característica particular dos cristãos, mas a dos judeus e dos gentios; nem os cristãos serão exortados a ela, pois ela resulta do temor da punição ou do amor do que é conveniente para si mesmo, e não do amor de Deus [50]”. A primeira justiça é o tipo que se encontra no mundo civil, e que opera sem preocupação ou relação com o Deus Triuno. Por outro lado, os dois segundos tipos de justiça são estritamente para os cristãos. Lutero liga o segundo tipo de justiça com o pecado original ou essencial, e a chama propriamente de justiça essencial, original ou alheia [51]. Ele descreve os aspectos únicos dessa justiça: “Essa [justiça] se torna nossa por meio da fé […] Essa [justiça] é imputada por meio do Batismo, caracteristicamente como o Evangelho anuncia, e não é a justiça da lei, mas a justiça da graça” [52].
Em seguida, Lutero expõe o terceiro tipo de justiça no seu sermão, a justiça que corresponde ao pecado atual: “A justiça contra esse [pecado atual] é atual, fluindo da justiça da fé, essencial [ou alheia]” [53]. Assim, o terceiro tipo de justiça tem sua fonte no segundo tipo de justiça, e descreve o crescimento do crente na santidade: “Pois essa terceira justiça é buscada por nenhum outro motivo senão o de que o pecado original seja vencido e que o corpo do pecado seja destruído” [54]. O terceiro tipo de justiça, a justiça atual, flui da fé característica da segunda justiça, e assim, é única dos crentes, uma vez que somente eles possuem fé. Porque Lutero mais tarde defendeu dois tipos de justiça ao invés de três é matéria de especulação. No entanto, a explicação poderia ser simplesmente por conta da necessidade do momento. Falando aos cristãos, Lutero pode ter considerado desnecessário discutir o primeiro tipo de justiça, em seu pensamento, talvez irrelevante. É interessante, entretanto, notar que em sua introdução à epístola aos Gálatas, com sua divisão entre justiça passiva e ativa, Lutero primeiro reconhece a existência de “muitos tipos” de justiça [55]. Poder-se-ia facilmente agrupar os dois primeiros exemplos de sua lista (justiça política e justiça cerimonial) dentro da primeira categoria da divisão tripla do seu sermão de 1518. É possível então detectar uma divisão tripla das justiças mesmo em sua aprovação mais explícita de uma divisão dupla.
Treze anos mais tarde, foi Melanchthon quem estabeleceu uma distinção similar dos três tipos de justiça, em sua disputa “Somos Justificados pela Fé e não pelo Amor”: “Existem três tipos de justiça. A primeira é aquela derivada da razão. A segunda é aquela que se conforma com a lei de Deus. A terceira é aquela que o Evangelho promete”[56]. Antes de considerar as definições mais completas de cada tipo de justiça, deve-se notar que nem a terminologia de Melanchthon e nem a sua ordem necessariamente coincidem com a de Lutero no seu sermão de 1518. Melanchthon elabora sobre cada tipo de justiça conforme a disputa se desenvolve. “A justiça da razão”, ele escreve, “é a justiça das obras, e a razão a produz”[57]. Enquanto é certo que as pessoas podem entender a justiça da razão, também é verdade que elas jamais poderiam compreender a justiça da lei que “consiste no amor para com Deus e o próximo “[58]. Por sua vez, a justiça do evangelho é aquela que justifica: “É certo que não somos justificados nem pela razão e nem pela lei, mas pelo Evangelho”[59].
Nessa disputa, Melanchthon reconhece uma distinção entre a justiça da razão e a justiça da lei. A segunda depende da justiça do evangelho:
A promessa é recebida pela fé. Por esta razão nós somos primeiro justificados pela fé, pela qual recebemos a promessa da reconciliação pela fé. Daí em diante guardamos a lei. Entretanto, uma vez que nascemos de novo pela fé, e recebemos o Espírito Santo, a justiça da lei está presente em nós, ou seja, o amor a Deus e ao próximo, o temor de Deus, a obediência às autoridades governamentais e aos pais, a paciência e tantas outras virtudes semelhantes.
Kolb and Nesstingen, Sources and Contexts, 142 (thesis 17 & 19); Haussleiter, “Melanchthons,” 253.
A justiça da lei excede a da razão, no que ela também inclui o amor a Deus e maiores padrões de obediência. A virtude cristã da humildade ou a regra do amor pelos inimigos são ambos bons exemplos de padrões decorrentes da lei, que superam o que se pode esperar de um padrão fundamentado apenas na razão. E enquanto Melanchthon relaciona a justiça da lei com a justiça do evangelho, ao mesmo tempo ele mantém uma rigorosa distinção entre elas:
Tiago ensina corretamente, “somos justificados pela fé e pelas obras”, pois as obras justificam de acordo com a justiça da lei, que certamente deve seguir a fé. No entanto, essa justiça da lei não é justiça aos olhos de Deus, exceto por causa da fé.
E as obras resultantes, porque elas agradam a Deus por causa da fé, são também meritórias, não para a justiça da vida eterna, mas para outras bençãos do corpo e da alma.
Kolb and Nesstingen, Sources and Contexts, 143 (thesis 33 & 34; emphasis added); Haussleiter, “Melanchthons,” 254.
A diferença está baseada no reconhecimento dos diferentes reinos dentro dos quais os cristãos vivem: coram Deo e coram mundo. A justiça da lei preocupa-se especialmente com a vida de um cristão em relação às realidades coram mundo.
Lutero e Melanchthon, ambos, cada um ao seu modo, trabalham para criar uma separação absoluta entre a justiça da fé, que justifica diante de Deus, e outros tipos de justiça, que interessam às realidades concretas do viver no reino da criação. Ambos os reformadores também dão o passo adicional de cuidadosamente distinguir dois tipos de justiça coram mundo: aquela que é alcançada pelos pagãos buscando viver corretamente diante dos outros, e a outra, que se manifesta naqueles que são justificados por Cristo, e que pela fé vivem de acordo com os ditames da lei revelada de Deus. Usando esse rico ensino da teologia da Reforma como um fundamento, é tempo de retornar ao desafio de construir uma estrutura funcional que irá permitir um ensino robusto sobre ética – incluindo a habituação intencional das virtudes e a resultante formação de caráter.
Dr. Joel Biermann, A Case for Character: Towards a Lutheran Virtue Ethics, Fortress Press 2014, p.122-125.
Conclusão
Eu sei que o texto acima parece difícil num primeiro momento (pare, volte e releia quantas vezes for preciso), mas ele está profundamente alicerçado na tradição cristã ocidental no todo, e na tradição luterana mais especificamente. Os Três Tipos de Justiça (Biermann propõe os termos governante, justificante e conformante) se alinham com os Três Usos da Lei (uso civil, uso cristológico e uso pedagógico). Percebe como as coisas se encaixam perfeitamente? Mas não para por aqui. O Três Tipos de Justiça também estão estreitamente relacionados com os Três Artigos do Credo: No primeiro artigo nós confessamos o Deus Criador que governa todo o mundo pela sua Lei, por meio da qual ele faz com que todos os homens vivam de um jeito ou de outro nessa justiça governante (Rm 2:14). No segundo artigo, nós confessamos o Deus Redentor, Jesus Cristo, o único que pode nos conceder a justiça justificante (1Pe 3:18), pois Ele é o único que cumpriu toda a Lei com todo seu rigor; E por último, confessamos igualmente o Deus Espírito Santificador, que usa a sua Lei para nos conformar à imagem de Cristo (Hb 8:10; Rm 8:10).
Infelizmente, muitos luteranos hoje só conseguem enxergar a Lei do primeiro e do segundo artigo do Credo. Se esquecem de que o Espírito Santo nos santifica também por meio da sua Lei, nos ensinando, nos instruindo e nos importunando para que deixemos toda sorte de vícios imundos que nos impedem de fazer progresso vida cristã.
Por tudo isso, é claro e evidente que há espaço para uma ética das virtudes na tradição luterana. Há espaço para trabalharmos mais na formação do caráter virtuoso em nossos filhos, amigos e paroquianos de nossas congregações. Devemos nos atentar parao fato de que há somente dois caminhos diante de nós: o caminho do florescimento humano e a reconstrução do caráter do homem ocidental que se espelha em Cristo, ou o caminho trilhado por instituições religiosas como a ELCA, que em 2016 chegou a realizar uma celebração religiosa para comemorar a mudança de nome de um membro transgênero.
Deixo aqui uma lista de livros luteranos antigos e contemporâneos que abordam direta ou indiretamente este assunto de maneira bíblica e confessional:
1 – Jordan Cooper, Christification: A Lutheran Approach to Theosis.
2 – Jordan Cooper, Hands of Faith: A Historical and Theological Study of the Two Kinds of Righteousness in Lutheran Thought.
3 – Jordan Cooper, Lex Aeterna: A Defense of the Orthodox Lutheran Doctrine of God’s Law and Critique of Gerhard Forde.
4 – Revere Franklin Weidner, Pneumatology, or the Doctrine of the Work of the Holy Spirit.
5 – Revere Franklin Weidner, A System of Christian Ethics (essa obra é bem difícil de achar, mas é simplesmente ímpar. Mesmo entre os católicos romanos, que sempre desenvolveram o tema de maneira muito mais exaustiva, não há nenhuma obra do século XVIII em diante que se iguale a esta. Para que o leitor tenha uma ideia, Weidner antecipa discussões atuais em política, psicologia, matrimônio, entre outros assuntos).
6 – Johann Gerhard, Schola Pietatis (3 vols).
FINIS
[50] WA 2:43 (as traduções desse sermão são do próprio autor)
[51] Ibid., 44.
[52] Ibid., 45.
[53] Ibid.
[54] Ibid., 47.
[55] LW 26:4
[56] Robert Kolb and James A. Nestingen, eds., Sources and Contexts of The Book of Concord (Minneapolis: Fortress Press, 2001), 141 (thesis 6); Johannes Haussleiter, ed., “Melanchthons loci praecipui und Thessen über die Rechtfertigung aus dem Jahre 1531,” in Abhandlungen Alexander von Oettingen zum siebenzigsten Geburtstag gewidmet von Freunden und Schülern (Munich:Beck, 1898), 252.
[57] Kolb and Nesstingen, Sources and Contexts, 141 (thesis 10); Haussleiter, “Melanchthons,” 252.
[58] Kolb and Nesstingen, Sources and Contexts, 141 (thesis 13); Haussleiter, “Melanchthons,” 252.
[59] Kolb and Nesstingen, Sources and Contexts, 141 (thesis 7); Haussleiter, “Melanchthons,” 252.