Vez outra me perguntam sobre a adoração eucarística no luteranismo. Uma vez que cremos na presença real (realiter, substantialiter) do corpo e sangue de Cristo no Sacramento, não é óbvio que esta presença ali deve ser adorada? Mas, uma vez que também cremos na presença substancial do pão e do vinho, não seria perigoso cometer um ato de idolatria, adorando parte da criação? São perguntas honestas e que devem ser levadas em consideração.
Essas perguntas já foram respondidas em extensos tratados luteranos, que podem ser facilmente encontrados no google. No entanto, hoje, em minha devoção familiar na Ordem das Matinas, me deparei com um texto extremamente pastoral e piedoso escrito pelo Santo Confessor e Reformador Georg III, o piedoso príncipe de Anhalt-Dessau, que muito contribuiu para a causa da reforma nos idos do XVI. Reproduzo na íntegra a tradução de meu próprio punho:
Embora certamente haja essa distinção (como Lutero explica) entre Cristo assentado acima no céu, Cristo no Sacramento e Cristo no coração dos crentes – pois Ele ascendeu ao céu para ser adorado, e para que se confesse que Ele é Senhor poderoso sobre todas as coisas (Filipenses 2), mas no Sacramento e no coração dos crentes, Ele não está presente para o propósito particular de ser adorado, mas para lidar conosco ali e nos ajudar – no entanto, disso não se segue que Ele não deve ser adorado no Sacramento também. Pois assim como nosso querido Senhor Jesus Cristo nasceu na carne nesse mundo não para ser servido, mas para nos servir e dar a Sua vida como a redenção de muitos (Mateus 21), e Ele não apareceu nesse mundo na pobre forma de um servo principalmente para ser adorado, ainda que graciosamente tenha aceitado a honra externa demonstrada a ele pelos crentes; Ele foi adorado pelas pessoas mesmo quando elas não viam nada diante de seus olhos, a não ser um homem pobre e miserável: os sábios do oriente o adoraram na forma de uma pequena criança; os santos anjos o serviram – eles adoraram o Filho do Homem – que, como diz em João 3 – está ao mesmo tempo diante de Nicodemus na terra, e no céu. Portanto, da mesma maneira, embora nosso querido Senhor Jesus Cristo não tenha instituído Sua Santa Ceia para ser visto e adorado, nem por isso é proibido ou deve ser considerado idolatria adorá-lo ali. Pelo contrário, é correto e muito apropriado, quando essa Santa Ceia é realizada de acordo com a instituição de nosso querido Senhor Jesus Cristo, quando as pessoas ali presentes, com toda devoção e reverência, o adoram, o verdadeiro Deus e homem, que está presente nesse venerável Sacramento, não apenas de acordo com Sua divina onipotência, espiritualmente, mas também corporalmente, verdadeiramente e essencialmente, contudo invisivelmente, como aquele que se assenta à destra da Majestade Divina e é exaltado por Deus, e recebeu um nome que é sobre todo nome, e diante do nome de Jesus Cristo, todo joelho no céu e na terra se dobrará, toda língua confessará que Jesus Cristo é o Senhor, para a glória de Deus o Pai [Filipenses 2:10-11].
Georg von Anhalt, Des Hochwirdigen Durchleuchten Hochgebornen Fürsten und Herrn/ Herrn Georgen Fürsten zu Anhalt… PRedigten und andere Schrifften/ darinn die Summa Christlicher leer/ trewlich und rein gefasset und erklert ist (Wittenberg: Hans Krafft, 1555), 190; cf. Treasury of Daily Prayer, Concordia Publishing House 2008, p.326.
Palavras finais:
O crente luterano sabe que o Deus-homem está ali corporalmente presente no Sacramento do Altar. Sabedores desta presença inefável, que não experimentamos de nenhum outro modo, é quase impossível que não sejamos levados a adorá-lo ali também. Se por um lado, não damos ênfase aos elementos terrenos (como afirma Santo Irineu) como faz a Igreja de Roma – visto que isto não faz o menor sentido, uma vez que adoramos o elemento celeste e invisível -, por outro lado, não somos displicentes como aqueles que negam a presença real do corpo e sangue de Cristo no Sacramento, e, consequentemente, também não o adoram ali. Isto explica muito do que geralmente se vê numa missa luterana (culto luterano). Geralmente, o crente chega diante do altar e se inclina levemente ao receber cada elemento, alguns se ajoelham para recebê-los, outros ainda até o recebem direto na boca. Feito isto, alguns fazem o sinal da cruz, outros não. Tudo isto é permitido e compatível com a adoração eucarística luterana. Não existem regras aqui! É importante que haja liberdade e entendimento. Acima de tudo, devemos nos lembrar de que estamos na mesa do Rei, e que nesta mesa provamos da comunhão mais íntima que podemos desfrutar com Ele nesta vida!

Georg von Anhalt (1507-1553) foi um príncipe alemão da casa de Ascania e legislador do principado de Anhalt-Dessau. Nobre de destacável interesse pela teologia, estudou em Leipzig, onde mais tarde se destacara como professor, e em 1524 foi ordenado ao sacerdócio. Depois de se dedicar intensamente à exegese e aos Pais da Igreja afim de refutar as “heresias luteranas”, o mesmo se converteu ao luteranismo após a um longo conflito de consciência. A partir da Dieta de Augusburgo (1530), se aliaria publicamente à causa luterana.
O Santo Culto Luterano remete à sacralidade e a transcedentalidade é belo e superior aos outros cultos de outras denominações protestantes.
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