A Doutrina da Presença Real (Física) destrói a Natureza Humana de Cristo?

Eis uma pergunta que merece uma resposta satisfatória. E com este fim, trago para esta discussão ninguém menos do que o grande Doutor Martin Chemnitz, um dos santos confessores da Cristologia Ortodoxa da Igreja, e uma das principais mentes por trás da Fórmula de Concórdia – o último grande documento confessional da Igreja Evangélica (Luterana).

Antes de adentrar no texto de Chemnitz, chamo atenção para o seguinte fato: o título deste artigo propositalmente parece sugerir que presença real é presença física. Isto quer dizer que uma presença espiritual não é tão real quanto uma presença física? Não, absolutamente não. No entanto, se o que se discute é a presença de uma substância física, então, obrigatoriamente, só podemos falar de uma presença real se a mesma for física. Neste caso, como estamos tratando do Corpo de Cristo, e não de seu espírito, não faria o menor sentido chamar uma presença espiritual de presença real.

Segue o excerto da obra de Chemnitz:

Mas quanto à visibildade e à circunscrição [ou circunscritibilidade] do corpo de Cristo, nós sustentamos, cremos e ensinamos de acordo com a Palavra de Deus que Cristo assumiu um corpo verdadeiro, visível e circunscrito. Todavia, de maneira alguma concedemos aos nossos oponentes que Ele [Cristo] não possa se tornar invisível com seu corpo, ou estar presente de uma maneira invisível e não circunscrita, como, onde e quando Ele desejar, especialmente onde Ele prometeu estar presente em Sua Palavra. Embora o corpo de Cristo possua visibilidade de modo natural, e Ele tenha assumido um corpo visível e verdadeiro; no entanto, a Escritura testifica que Ele se tornou invisível aos judeus (João 8:59), como Teofilato também explica em seu comentário em João, e aos dois discípulos em Emaús (Lucas 24:31). Disto, segue-se inegavelmente que a visibilidade não é uma propriedade essencial da natureza humana assumida de Cristo, de forma que sem a destruição de Seu verdadeiro corpo Ele não possa estar ou se tornar invisível com ele, ou estar presente de modo invisível com este mesmo corpo.

Dr. Martin Chemnitz, Apology of The Book of Concord, CPH 2018, p.14

Explico:

Os oponentes – sacramentarianos [calvinsitas] e zwinglianos – acusavam (e assim o fazem até hoje) os luteranos de anularem a natureza humana de Cristo. Por quê? Porque dizemos que o corpo de Cristo está no Sacramento. Como? Ele está física e substancialmente, embora de maneira invisível e não circunscrita, em vários lugares ao mesmo tempo. Os oponentes protestam: “isto é anular a natureza humana de Cristo”. Percebam que este não é um argumento teológico, mas puramente filosófico, e, como tal, deve ser preterido por argumentos teológicos. Chemntiz é genial quando afirma categoricamente que a visibilidade e a circunscrição não são propriedades essenciais da natureza humana. Em nenhum lugar a Bíblia ensina tal coisa. Pelo contrário, os exemplos bíblicos elencados por Chemnitz atestam justamente o contrário:

Assim, embora Ele [Cristo] tenha assumido um corpo circunscrito, contudo, a Escritura testifica que Ele passou por uma pedra selada em sua tumba (Mateus 28:5-6; cf. Mateus 27:66) e por meio de uma porta trancada pelos seus discípulos (João 20:19) com este corpo, de uma maneira não circunscrita, o que não teria acontecido se a circunscrição fosse uma propriedade essencial do corpo de Cristo, e especialmente de Seu corpo glorificado, como os nossos oponentes arrogantemente afirmam.

Dr. Martin Chemnitz, Apology of The Book of Concord, CPH 2018, p.14

Comento:

Aqui os nossos adversários podem discordar: “mas o milagre não se deu no corpo de Cristo, mas sim nos objetos por ele atravessados”. Concedamos que o milagre tenha se dado nos objetos, concedamos isto apenas por um instante, ainda que a Bíblia se cale a este respeito. Feita esta concessão, agora imagine a cena que a Bíblia quer nos relatar: houve um instante em que Cristo atravessava os objetos e não era visto por ninguém. Agora me digam: o que está acontecendo aqui? Cristo está fisicamente ali, e, contudo, de modo invisível. Daí segue-se o nosso ponto: Cristo pode estar fisicamente presente, ainda que invisível. Nossos adversários escorregam para argumentos físicos (repito! Não são teológicos!), mas mesmo aqui eles não têm razão.

Sigamos com o texto do Confessor:

Além disso, é certamente verdadeiro que nenhum coração humano imaginou que tipo de propriedades espirituais, gloriosas e celestiais os corpos dos santos terão na vida futura [1Co 2:9]. Por que, então, eles querem acorrentar o corpo do nosso Senhor Cristo tão rigidamente a um lugar visível e circunscrito? Eles dizem que a menos que Seu corpo glorificado que foi exaltado a destra de Deus seja destruído, Ele [Cristo] não pode estar presente com ele em qualquer lugar de modo invisível e não circunscrito, muito embora Ele simplesmente prometa fazer exatamente isto em Sua Palavra.

Agostinho, Bernardo e outros pais confessaram explicitamente que o corpo de Cristo é invisivelmente distribuído e recebido com o pão consagrado na Ceia do Senhor; portanto, de acordo com a confissão e doutrina de Agostinho e Bernardo, visibilidade e circunscritibilidade de modo algum são propriedades essenciais do corpo de Cristo pelas quais, a não ser que este corpo seja destruído, Cristo não pode estar invisivelmente presente com seu corpo em Sua Igreja e na Ceia do Senhor de acordo com Sua Palavra e promessa.

Martin Bucer também confessou em suas retratações e em outros lugares, como suas palavras serão citadas mais tarde, que NADA CERTO PODE SER AFIRMADO DA PALAVRA DE DEUS SOBRE SE O CORPO DE CRISTO ESTÁ CIRCUNSCRITO NO CÉU OU NÃO. Agostinho e outros pais mantiveram essa posição no passado, e Bucer também escreveu sobre a presença invisível do corpo de Cristo.

Em resumo, a presença invisível do corpo humano não oblitera a natureza ou suas propriedades essenciais, nem acaba com elas, como nossos oponentes sempre gritam. Também está escrito que os corpos de muitos santos ressurgiram dos mortos com Cristo (Mateus 27:52-53), entraram na cidade santa e apareceram a muitos; ou seja, embora eles estivessem verdadeiramente presentes, não teriam sido vistos. Agora, se Deus o Senhor pode efetuar isto nos corpos dos santos sem destruí-los, quanto mais Ele pode fazer no corpo de Cristo, que é o corpo do próprio filho de Deus, inseparavelmente assumido por Ele e exaltado à destra do poder de Deus?

Dr. Martin Chemnitz, Apology of The Book of Concord, CPH 2018, p.15

Conclusão

Qual é o argumento comumente levantado por calvinistas e outros simbolistas contra a doutrina evangélica do Sacramento do Altar? O de que anulamos a natureza humana de Cristo. Este argumento é teológico? É ele extraído das Escrituras? Não, de maneira alguma. Trata-se de um pressuposto filosófico grosseiro, que não pode se sustentar firmemente. Deve-se dar ouvidos à voz de Deus nas Escrituras, dizendo “Isto é o meu corpo”. Martin Bucer percebeu tal erro e se retratou, desistindo da loucura de afirmar categoricamente que o corpo glorioso de nosso Salvador está preso no céu. Tal retratação deve ser vista como emblemática, tal como a razão (no caso, “aquela prostituta“) se curvando diante das Escrituras, cumprindo o “levando cativo todo pensamento à obediência de Cristo” (2Co 10:5).

FINIS

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