Como todos sabem, o rebatismo é uma prática muito comum entre as seitas protestantes, sobretudo quando se trata de receber irmãos oriundos da Igreja Católica Romana (doravante, ICAR). Mesmo alguém que fora batizado na adolescência ou já na vida adulta na ICAR, com água e sob a fórmula trinitária, precisa se rebatizar caso deseje pertencer a essas comunidades protestantes. Com essa atitude elas afirmam publicamente que não reconhecem a ICAR como uma igreja cristã visível. Além disso, as comunidades credobatistas como as igrejas batistas, as assembleias de Deus e a Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) não reconhecem os batismos realizados na infância em outras comunidades protestantes pedobatistas, como nas igrejas presbiterianas. Neste último caso, não se trata de não se reconhecerem mutuamente como igrejas visíveis, mas de não reconhecerem a validade do batismo infantil.
Seja como for, é curioso notar como o protestantismo em geral se apartou aqui de Lutero e da Igreja Evangélica (Luterana), que sempre condenaram a prática do rebatismo como danosa à Igreja no sentido mais próprio da palavra, ou seja, danosa para a comunidade de fé nos corações (a comunhão dos santos), e danosa para o próprio Evangelho.
Abaixo segue um excerto de um importante texto de Lutero sobre o rebatismo:
Eu digo que o papado tem a verdadeira Cristandade – certamente, o verdadeiro cinzel da Cristandade e muitos grandes e piedosos santos. Devo parar de agir como hipócrita? Ouçam o que São Paulo diz em 2Ts 2,4: “O Anticristo se assenta como Deus no templo de Deus”. Se, então, o papa (como eu verdadeiramente creio) é o próprio Anticristo, ele não se assentará ou governará no estábulo do demônio, mas no templo de Deus. Não, certamente, ele não se assentará onde somente os demônios e infiéis estão, ou onde não há nenhum Cristo nem Cristandade, pois visto que ele é o Anticristo [Widerchrist], ele deve se assentar no meio dos cristãos. E se ele deve se assentar e governar ali, ele deve ter cristãos sob ele mesmo. Pois o templo de Deus não é uma pilha de pedra, mas a santa Cristandade (1Co 3,17) na qual ele deve governar. Portanto, se a Cristandade está sob o papado, então verdadeiramente [a Cristandade] deve ser o Corpo e membro de Cristo. Se é o seu Corpo, então ela tem o Espírito, o Evangelho, a fé, o Batismo, o Sacramento, as Chaves, o ofício da pregação, a oração, a Escritura Sagrada, e todas as coisas que a Cristandade deve ter. Nós também ainda estamos sob o papado e temos esses dons cristãos dele. Mas [o papa] nos persegue, amaldiçoa, excomunga, proíbe, queima, mata, e lida com nós pobres cristãos como o verdadeiro Anticristo deve ameaçar os cristãos.
Mas tais cristãos devem ser corretamente batizados e membros sinceros de Cristo; de outra forma, não poderiam obter a vitória contra o Anticristo pelo martírio. Portanto, não deliramos como fazem os espíritos fanáticos, de forma a rejeitar o que o papa possui. Pois então rejeitaríamos também a Igreja Cristã, o “templo de Deus”, junto com todas as bençãos que foram obtidas de Cristo. Contra isto contendemos que o papa não quer continuar apenas com os dons da Cristandade que ele herdou dos apóstolos, mas ele acrescenta a eles suas próprias adições diabólicas e muito mais, e não usa os dons para a edificação do templo de Deus, mas para a sua destruição, para que se considere seu comando [Gebot] e ordem [Ordnung] maiores que a ordem de Cristo. No entanto, a despeito dessa destruição, Cristo preserva sua Cristandade, assim como Ele preservou Ló em Sodoma, sobre os quais São Pedro também pregou em 2Pe 2,6-7, que ambos permaneciam juntos: o Anticristo se assenta no templo de Deus por meio da operação do demônio (2Ts 2:4,9), contudo, o templo de Deus é e permanece templo de Deus por meio da preservação [graciosa] de Cristo. Se o papa pode tolerar e aceitar isto, minha “hipocrisia”, então certamente eu serei seu filho obediente e um piedoso papista. Eu realmente ficaria feliz, e voltaria atrás com tudo com que feri seus sentimentos. Portanto, os anabatistas e fanáticos erram quando dizem que qualquer coisa que o papa tenha está errada, ou dizendo porque isso ou aquilo acontece sob o papado, deveríamos agir diferente. É como se eles quisessem provar-se ávidos inimigos do Anticristo, mas não enxergam que agindo assim eles o fortalecem grandemente, enquanto paulatinamente enfraquecem a Cristandade e enganam a si mesmos. Eles deveriam nos ajudar a rejeitar os abusos e adições [do papa], mas com isso não obteriam qualquer glória especial, visto que eles percebem que não podem ser os primeiros neste assunto. Portanto, eles atacam o que ninguém atacou para que possam ser os primeiros a fazer isto e reivindicar a honra por tal atitude.
Mas essa honra deve se tornar em vergonha, pois eles atacam o templo de Deus e erram o Anticristo que se assenta nele; eles são como cegos que procuram por água, mas colocam suas mãos no fogo. Certamente, eles fazem como um irmão fez ao outro na Floresta Turingiana: eles caminhavam juntos em meios as árvores quando subitamente um urso os atacou e lançou um deles debaixo de seu corpo. O outro, querendo ajudar seu irmão, apunhalou o urso, mas o errou e miseravelmente perfurou o irmão que estava por baixo do urso.
Os fanáticos fazem o mesmo. Eles deveriam ajudar a pobre Cristandade, que o Anticristo tem em seu poder e torturas, e se opor duramente ao papa; mas nisto eles falham e assassinam ainda mais miseravelmente a pobre Cristandade sob o papa. Pois se eles deixassem intactos o Batismo e o Sacramento [a Ceia do Senhor], as almas dos cristãos sob o papa poderiam ainda escapar e serem salvas, como aconteceu até agora. Mas visto que agora os Sacramentos são tirados deles, indubitavelmente se perderão, uma vez que com isto o próprio Cristo lhes é tirado. Meu caro amigo, esta não é a maneira de bater no papa, pois os santos de Cristo estão sob ele. Isto requer um espírito cauteloso, modesto, que deixe de pé o templo de Deus e se oponha às adições pelas quais [o papa] destrói o templo de Deus.
Dr. Martinho Lutero, Concerning Rebaptism, 1528; Halle 17:2646-50.
Considerações
São textos como esse que revelam como o protestantismo em geral se afastou de Lutero e da Reforma Evangélica. E a raiz deste afastamento é o que Lutero chama de entusiasmo – a descrença e o desprezo dos meios de graça. Os protestantes em geral desconhecem o fato de que o motivo pelo qual Lutero teve a coragem de seguir separado da Sé de Roma é o mesmo pelo qual ele morreu afirmando coisas como “o papado tem a verdadeira cristandade“, ou seja, a sua confiança inabalável nos meios de graça, confiança esta que já não se encontrava na Sé de Roma e muito menos entre as seitas reformistas. Na verdade, este é o ponto de Lutero nos Artigos de Esmalcalde: ambos os grupos, papistas (como ele os chamava carinhosamente) e fanáticos, eram, apesar de suas diferenças, todos entusiastas.
Afirmar a nulidade do batismo infantil, fazendo-o depender de uma profissão de fé é perverter toda a lógica evangélica por trás do sacramento, assunto que já tratamos em outro lugar. Mas o que é ainda mais incompreensível é a atitude de comunidades protestantes pedobatistas que consideram nulo um batismo feito com água e plenamente trinitário. Tal atitude não deve ser rejeitada só porque contraria TODA a história da Igreja Cristã, mas porque despreza e invalida a graça de Deus no Santo Batismo, que não depende da nossa ortodoxia, do nosso compromisso doutrinário, mas somente da sua vontade santa e infalível. Toda criança batizada é lavada pelo lavar regenerador do Espírito Santo (Tito 3,5), mesmo numa igreja heterodoxa, mesmo entre hereges. O fato de esta criança mais tarde vir a crer em heresias e perder a fé, não é demérito do batismo realizado, mas do seu pecado. Há um só batismo (Ef 4,5).
Um caso que nos chama a atenção pela completa incoerência é a prática da Igreja Presbiteriana do Brasil, que afirma em suas confissões e resoluções do seu Supremo Concílio que: (1) o papa é o Anticristo e (2) a Igreja Católica Romana não é uma igreja cristã. Eis a questão! Se o Anticristo é aquele que se assenta no templo de Deus, e a igreja católica romana não é uma igreja de Deus (ou cristã), então certamente o Anticristo deve estar em outro lugar, que não a ICAR. Isto se chama fanatismo, e nada tem a ver com a Doctrina Evangelii ensinada na Reforma. Devemos rejeitar tal atitude porque a longo prazo este desprezo pelos sacramentos tem levado multidões para incerteza quanto aos meios que o próprio Deus estabeleceu, e assim encaminhando-as para uma necessidade doentia de experiências sentimentais/espirituais provocadas por grandes oradores e pregadores, momentos worship, ou de outro lado numa intelectualização do mistério da Fé – com cultos que se parecem mais com uma sala de aula. O resultado é sempre o mesmo: descrença e desconfiança para com os meios de graça. Querem matar o Anticristo, mas matam o povo que outrora esteve sob ele.
Tolle, lege!