Segue abaixo um excerto do argumento histórico de Adolf von Hoenecke (dogmático luterano do século XIX), no qual ele enumera uma série de decretos papais que contradizem abertamente outros congêneres.
E finalmente, é bem conhecido como os papas, mesmo falando ex cathedra, se contradizem. Gregório I reconheceu o Concílio de Calcedônia; mas Leão I diz em sua epístola 59 que ele sempre rejeitou seus decretos. Nicolau I reconheceu o Batismo feito somente em nome de Cristo como correto; mas Zacarias só reconheceu como válido o Batismo feito em nome da Trindade, enquanto o Papa Pelágio já havia declarado a invocação de toda a Trindade no Batismo como sendo simplesmente necessária, de acordo com toda a igreja oriental e ocidental. Estevão VII revogou os decretos de Formoso, o Papa Romano I revogou os decretos de Estevão, e novamente João IX fez o mesmo com os decretos de Romano. Honório I era um monotelita; João IV condenou os monotelitas mas buscou justificar Honório; mas Leão II reconheceu o veredito da condenação do sexto concílio ecumênico de Constantinopla (680) sobre Honório. Num édito Alexandre III declarou certos casamentos como não separados, casamentos estes que os seus antecessores tinham permitido o divórcio. Considerem os vários papas contemporâneos que mutuamente condenaram uns aos outros! Nicolau III decidiu propriamente, judicialmente e ex cathedra, porque lhe fora pedido uma decisão, no decreto Exiit, qui seminat, que de acordo com a doutrina de Cristo era meritório não possuir nenhuma propriedade, e que todos os bens no uso dos franciscanos não eram de sua propriedade, mas pertenciam à igreja. Ele também declarou que qualquer um que desmentisse esta declaração seria excomungado. Clemente V, e inicialmente até João XXII, aprovaram esta declaração e decisão, com a qual os franciscanos estritos, os espirituais, concordaram completamente. Mas quando Clemente brigou com os espirituais ele rejeitou as decisões de seus antecessores numa nova bula, e consignou os espirituais à inquisição. E então veio Sisto IV e novamente reconheceu os espirituais e sua doutrina. Enquanto de outra forma os papas haviam declarado os casamentos de homens livres e servos como indissolúveis, Estevão II permitiu a dissolução de tais casamentos. Celestino definiu que quando um membro de um casamento caísse em heresia, o outro membro ortodoxo poderia entrar em outro casamento; mas Inocêncio III rejeitou o decreto. Na verdade, o próprio Adriano VI chamou Celestino de herege por conta desta decisão. Estes decretos foram mais tarde apagados da coleção de manuscritos, mas Alfonso de Castro¹ ainda os viu, como ele mesmo relata. No decreto Qui filii sunt legitimi, Inocêncio III declarou que Deuteronômio é chamado de segunda lei porque ele deve sempre ser válido para a segunda igreja, ou seja, a igreja cristã; e assim, em total oposição a todas as outras decisões papais, ele elevou ao estado de lei permanente a lei segunda a qual um homem poderia despedir sua esposa caso ela não lhe fosse agradável (Dt 24:1). Em qualquer caso, Inocêncio III demonstra bem o tato da infalibilidade papal em matéria de interpretação. Pelágio II prescreveu que subdiáconos deveriam despedir suas esposas legalmente casadas; Gregório I prescreveu o oposto, “que no futuro ninguém poderia entrar nesta ordem a menos que tivesse prometido castidade”, e rejeitou o decreto de Pelágio II como “duro e injusto”. Por outro lado, Inocêncio III novamente reconheceu a decisão de Pelágio como correta, razoável e justa.
Menção deveria ser feita da edição da Bíblia de Sisto V. Na bula emitida o papa excomungava qualquer um que alterasse ou melhorasse esta edição. Mas visto que mais de dois mil erros foram logo encontrados nela, o próprio papa teve de corrigi-la em secreto. Como esta edição, no entanto, acabou cheia de erros, por instigação de Belarmino, Clemente VIII obteve uma nova edição, que incialmente apareceu sob o nome de Sisto V. Mas mesmo esta ainda tinha erros, como o próprio Belarmino diz e como o próprio Clemente VIII admite em sua bula.
Adolf von Hoenecke, Evangelical Lutheran Dogmatics I, Northwestern Publishing House 2009, pp.494-495 – negrito nosso para indicar o nome dos papas.
[1] Alfonso de Castro (1495-1558) foi um famoso teólogo e jurista espanhol da Escola de Salamanca (escolasticismo espanhol tardio), que chegou a participar do Concílio de Trento.