O problema do cânon tridentino

Depois de mencionar sua lista canônica, incluindo no Antigo Testamento os livros conhecidos por nós como apócrifos, o Concílio de Trento declara na seção IV:

Se alguém então não reconhecer como sagrados e canônicos estes livros inteiros, com todas as suas partes, como é de costume desde antigamente na Igreja católica, e se acham na antiga versão latina chamada Vulgata, e os depreciar de pleno conhecimento, e com deliberada vontade as mencionadas traduções, seja excomungado.

Schaff, The Creeds of Christendom, 2:82.

E assim Belarmino se prestou a defender o cânon tridentino:

Todos estes livros [apócrifos] foram ao mesmo tempo rejeitados pelos hebreus, como São Jerônimo traz testemunho no prólogo de seu comentário sobre Gálatas. Depois disso quase todos os hereges daquele tempo seguiram essa opinião dos hebreus. – §2. Mas a igreja católica reconhece estes e outros livros como santos e canônicos.

Bellarmine, Disputationes de controversiis christ. fidei adv. hujus temporis haereticos, tom. I, de verbo Dei, lib. I, cap. X, §1, p.18 [ênfase nossa].

Belarmino, como a maioria de seus pares contemporâneos, e ao contrário da maioria dos teólogos católicos romanos de nossos dias, reconhece que os ditos apócrifos não foram reconhecidos pelos hebreus. Esta declaração se repete ad infinitum em vários de seus escritos apologéticos.

Os confessores da Reforma perceberam que esta argumentação era autodestrutiva por duas vias, (1) pela exegese bíblica e (2) pela via da tradição:

O Antigo Testamento segundo a própria Palavra de Deus:

São Paulo Apóstolo ensina que quanto ao Antigo Testamento, os judeus eram divinamente responsáveis/encarregados dos oráculos de Deus – γὰρ ὅτι ἐπιστεύθησαν τὰ λόγια τοῦ Θεοῦ (Rm 3,2).

É por isso que podemos e devemos fazer distinção entre os livros do cânon judaico e aqueles livros que, embora fossem lidos com proveito, careciam de status canônico.

Rejeitar ou alterar o cânon hebraico é rejeitar a agência do próprio Deus na história. A Escritura é tão clara que se vale da mesma expressão ἐπιστεύθησαν em outras passagens neotestamentárias justamente para trazer a ideia de Deus confiando uma responsabilidade/encargo a alguém ou um grupo de pessoas:

[…] é porque uma responsabilidade me foi confiada (πεπίστευμαι).

1 Coríntios 9,17

[…] quando viram que me havia sido confiado (πεπίστευμαι) o evangelho da incircuncisão […].

Hebreus 5,12

[…] visto que fomos aprovados por Deus, a ponto de ele nos confiar (πιστευθῆναι) o evangelho […].

1 Tessalonicenses 2,4

[…] segundo o evangelho da glória do Deus bendito, do qual fui encarregado (ἐπιστεύθην).

1 Timóteo 1,11

Enfim, se Belarmino reconhecia que os hebreus não receberam, mas rejeitaram os ditos apócrifos, ele estava deliberadamente lutando contra a agência divina na história do cânon e da Igreja. É exatamente aqui que se encaixa o conceito de “tradições de homens“, ou seja, são tradições que, conforme Cristo diz nos evangelhos, invalidam a Palavra de Deus. Pouco importa aqui se Deus confiou o cânon do Antigo Testamento aos hebreus, o que importa é defender cegamente as palavras do Concílio de Trento.

O Antigo Testamento segundo a Tradição:

Em primeiro lugar, como argumentaram os nossos, a tradição mais antiga no que diz respeito ao cânon não é aquela que começa com os padres latinos ou gregos, mas sim aquela que começa com os hebreus, como o próprio São Paulo apóstolo afirma (Rm 3,2). O grande problema é que mesmo se ignorarmos toda a gigantesca literatura hebraica sobre o assunto, ainda assim a tradição mais antiga entre os padres da Igreja Cristã também fazia distinção entre o cânon hebraico e os outros livros.

Vejam primeiro o argumento de Belarmino pela via da tradição:

Inicialmente estes livros foram colocados no cânon com o restante pelo Concílio de Cartago (III, cânone 47), pelo Concílio de Trento (seção IV), pelo Papa Inocêncio I (em sua carta a Exupério), pelo Papa Gelásio I (no seu decreto a respeito dos livros sagrados e os 70 bispos da igreja). Depois, isto também foi feito pelos pais Agostinho (de doctrina christ., lib. II, c.8), Iisidoro (etymol., lib.6, c.1), Cassiodoro (divinarum lectionum, lib.I), e Rábano (de institutione clericorum, 1.II). Mas eu os coloquei aqui como livros de verdade infalível, de onde pode ser deduzido que eles foram enumrados e colocados nesta ordem com os outros que são de verdade infalível.

Bellarmine, Disputationes de controversiis christ. fidei adv. hujus temporis haereticos, tom. I, de verbo Dei, lib. I, cap. X, §3.

Esta posição é rejeitada por uma miríade de teólogos mais próximos dos apóstolos do que estes citados por Belarmino, como Melito, Orígenes, Santo Atanásio, Eusébio, Epifânio, São Cirilo de Jerusalém, Gregório de Nazianzo, Anfilóquio de Icônio, Santo Hilário, São Jerônimo e Rufino de Aquileia. Mesmo assim, existe uma série de inconsistências nas fontes que Belarmino cita a seu favor. Veja o que Hoenecke diz, esboçando um panorama histórico:

Na antiga igreja oriental, as pessoas não chamavam de apócrifos os livros do Antigo Testamento que a LXX anexou aos livros reconhecidos pela igreja judaica como canônicos, e que nós chamamos de apócrifos. A razão indubitavelmente era que a palavra “apócrifo” não soava agradável, tinha um sentido negativo que nós hoje não conectamos à palavra, embora decididamente façamos distinção entre os livros apócrifos e os livros canônicos. No tempo de Orígenes, Atanásio definiu apócrifo como ficcioso, carecendo de qualquer verdade. Mas embora os pais orientais agora contem os assim chamados apócrifos do Antigo Testamento como parte do Antigo Testamento, contudo, eles ainda são conscientes do fato de que estes livros não estavam no cânon da igreja judaica, e eles mesmos fazem uma distinção explícita entre aqueles livros contados como canônicos pela igreja judaica, e os presentes apócrifos do Antigo Testamento. Orígenes diz que “para confirmação de doutrinas, ninguém deve usar os livros que estão fora da Escritura canonizada”¹. Em suas Festal Letters, Atanásio estabelece três classes de livros: (1) livros canônicos, i.e., aqueles já canonizados pela igreja judaica, (2) livros para serem lidos, nossos presentes apócrifos do Antigo Testamento, e (3) os apócrifos no sentido da igreja antiga. Assim, havia uma consciência ativa da distinção entre aqueles livros que eram realmente canônicos e aqueles que eram apócrifos. Cirilo de Jerusalém, Gregório de Nazianzo e Anfilóquio de Icônio aderiram a todo o cânon hebraico. Cirilo explicitamente instruiu os catecúmenos a lerem somente os 22 livros canônicos do Antigo Testamento. Ele também alude ao importante fato de que Cristo e os apóstolos dependiam somente destes 22 livros. O Sínodo de Laodicéia e Epifânio falam da mesma maneira; Epifânio, e.g., diz que o Eclesiástico e Sabedoria de Salomão não eram reconhecidos pelos judeus e, portanto, não foram preservados na arca [com os outros pergaminhos].

Adolf von Hoenecke, Evangelical Lutheran Dogmatics I, Northwestern Publishing House 2009, p.509.

Ainda sobre o Concílio de Cartago, Hoenecke aponta que tal cânon decretado deveria ainda ser “aprovado pela igreja d’além mar“.

Ainda sobre a posição de Agostinho, Hoenecke esclarece que ele não os recebera sem também fazer distinções e ressalvas. Por exemplo, sobre Sabedoria 2,12, Agostinho diz:

Os escritos que não estão no cânon dos Judeus não avançam em contradições de maneira tão contundente.

Agostinho, Cidade de Deus 17, 20.

Ainda sobre 2 Macabeus 14,37, ele diz:

Isto não é recebido pela igreja sem proveito se for lido ou ouvido de maneira sóbria.

Agostinho, Contra Gaudentinum, I,31.

Em vão também Belarmino cita uma série de passagens em que os pais da Igreja se referem aos apócrifos como “livros santos” ou “Escrituras”, etc. Os nossos também o faziam, e nem por isso os consideravam canônicos. Num sentido estes livros são realmente santos, na medida em que tratam das coisas santas ou divinas. Aliás, o próprio Livro de Concórdia faz referência aos apócrifos chamando-os de Escritura.

Conclusão

Resumindo, a posição de Belarmino e da maioria dos teólogos tridentinos atenta contra (1) a Palavra de Deus, (2) contra a tradição hebraica, que é reconhecida por São Paulo apóstolo como responsável pelo cânon do Antigo Testamento, e (3) contra a tradição da própria Igreja Cristã, que fazia clara distinção entre o cânon hebraico e outros livros lidos pelos hebreus. O que se vê no argumento desses teólogos tridentinos não é apenas um apelo à tradição, mas um apelo a uma tradição inventada, sem continuidade apostólica e profética verdadeiras.

FINIS

[1] Cf. Realencyklopädie für protestatische Theologie und Kirche, 1st. ed., 7:261.

Mesmo falando ex cathedra eles se contradizem.

Segue abaixo um excerto do argumento histórico de Adolf von Hoenecke (dogmático luterano do século XIX), no qual ele enumera uma série de decretos papais que contradizem abertamente outros congêneres.

E finalmente, é bem conhecido como os papas, mesmo falando ex cathedra, se contradizem. Gregório I reconheceu o Concílio de Calcedônia; mas Leão I diz em sua epístola 59 que ele sempre rejeitou seus decretos. Nicolau I reconheceu o Batismo feito somente em nome de Cristo como correto; mas Zacarias só reconheceu como válido o Batismo feito em nome da Trindade, enquanto o Papa Pelágio já havia declarado a invocação de toda a Trindade no Batismo como sendo simplesmente necessária, de acordo com toda a igreja oriental e ocidental. Estevão VII revogou os decretos de Formoso, o Papa Romano I revogou os decretos de Estevão, e novamente João IX fez o mesmo com os decretos de Romano. Honório I era um monotelita; João IV condenou os monotelitas mas buscou justificar Honório; mas Leão II reconheceu o veredito da condenação do sexto concílio ecumênico de Constantinopla (680) sobre Honório. Num édito Alexandre III declarou certos casamentos como não separados, casamentos estes que os seus antecessores tinham permitido o divórcio. Considerem os vários papas contemporâneos que mutuamente condenaram uns aos outros! Nicolau III decidiu propriamente, judicialmente e ex cathedra, porque lhe fora pedido uma decisão, no decreto Exiit, qui seminat, que de acordo com a doutrina de Cristo era meritório não possuir nenhuma propriedade, e que todos os bens no uso dos franciscanos não eram de sua propriedade, mas pertenciam à igreja. Ele também declarou que qualquer um que desmentisse esta declaração seria excomungado. Clemente V, e inicialmente até João XXII, aprovaram esta declaração e decisão, com a qual os franciscanos estritos, os espirituais, concordaram completamente. Mas quando Clemente brigou com os espirituais ele rejeitou as decisões de seus antecessores numa nova bula, e consignou os espirituais à inquisição. E então veio Sisto IV e novamente reconheceu os espirituais e sua doutrina. Enquanto de outra forma os papas haviam declarado os casamentos de homens livres e servos como indissolúveis, Estevão II permitiu a dissolução de tais casamentos. Celestino definiu que quando um membro de um casamento caísse em heresia, o outro membro ortodoxo poderia entrar em outro casamento; mas Inocêncio III rejeitou o decreto. Na verdade, o próprio Adriano VI chamou Celestino de herege por conta desta decisão. Estes decretos foram mais tarde apagados da coleção de manuscritos, mas Alfonso de Castro¹ ainda os viu, como ele mesmo relata. No decreto Qui filii sunt legitimi, Inocêncio III declarou que Deuteronômio é chamado de segunda lei porque ele deve sempre ser válido para a segunda igreja, ou seja, a igreja cristã; e assim, em total oposição a todas as outras decisões papais, ele elevou ao estado de lei permanente a lei segunda a qual um homem poderia despedir sua esposa caso ela não lhe fosse agradável (Dt 24:1). Em qualquer caso, Inocêncio III demonstra bem o tato da infalibilidade papal em matéria de interpretação. Pelágio II prescreveu que subdiáconos deveriam despedir suas esposas legalmente casadas; Gregório I prescreveu o oposto, “que no futuro ninguém poderia entrar nesta ordem a menos que tivesse prometido castidade”, e rejeitou o decreto de Pelágio II como “duro e injusto”. Por outro lado, Inocêncio III novamente reconheceu a decisão de Pelágio como correta, razoável e justa.

Menção deveria ser feita da edição da Bíblia de Sisto V. Na bula emitida o papa excomungava qualquer um que alterasse ou melhorasse esta edição. Mas visto que mais de dois mil erros foram logo encontrados nela, o próprio papa teve de corrigi-la em secreto. Como esta edição, no entanto, acabou cheia de erros, por instigação de Belarmino, Clemente VIII obteve uma nova edição, que incialmente apareceu sob o nome de Sisto V. Mas mesmo esta ainda tinha erros, como o próprio Belarmino diz e como o próprio Clemente VIII admite em sua bula.

Adolf von Hoenecke, Evangelical Lutheran Dogmatics I, Northwestern Publishing House 2009, pp.494-495 – negrito nosso para indicar o nome dos papas.

[1] Alfonso de Castro (1495-1558) foi um famoso teólogo e jurista espanhol da Escola de Salamanca (escolasticismo espanhol tardio), que chegou a participar do Concílio de Trento.

Lutero – sobre a prática do rebatismo

Como todos sabem, o rebatismo é uma prática muito comum entre as seitas protestantes, sobretudo quando se trata de receber irmãos oriundos da Igreja Católica Romana (doravante, ICAR). Mesmo alguém que fora batizado na adolescência ou já na vida adulta na ICAR, com água e sob a fórmula trinitária, precisa se rebatizar caso deseje pertencer a essas comunidades protestantes. Com essa atitude elas afirmam publicamente que não reconhecem a ICAR como uma igreja cristã visível. Além disso, as comunidades credobatistas como as igrejas batistas, as assembleias de Deus e a Igreja Adventista do Sétimo Dia (IASD) não reconhecem os batismos realizados na infância em outras comunidades protestantes pedobatistas, como nas igrejas presbiterianas. Neste último caso, não se trata de não se reconhecerem mutuamente como igrejas visíveis, mas de não reconhecerem a validade do batismo infantil.

Seja como for, é curioso notar como o protestantismo em geral se apartou aqui de Lutero e da Igreja Evangélica (Luterana), que sempre condenaram a prática do rebatismo como danosa à Igreja no sentido mais próprio da palavra, ou seja, danosa para a comunidade de fé nos corações (a comunhão dos santos), e danosa para o próprio Evangelho.

Abaixo segue um excerto de um importante texto de Lutero sobre o rebatismo:

Eu digo que o papado tem a verdadeira Cristandade – certamente, o verdadeiro cinzel da Cristandade e muitos grandes e piedosos santos. Devo parar de agir como hipócrita? Ouçam o que São Paulo diz em 2Ts 2,4: “O Anticristo se assenta como Deus no templo de Deus”. Se, então, o papa (como eu verdadeiramente creio) é o próprio Anticristo, ele não se assentará ou governará no estábulo do demônio, mas no templo de Deus. Não, certamente, ele não se assentará onde somente os demônios e infiéis estão, ou onde não há nenhum Cristo nem Cristandade, pois visto que ele é o Anticristo [Widerchrist], ele deve se assentar no meio dos cristãos. E se ele deve se assentar e governar ali, ele deve ter cristãos sob ele mesmo. Pois o templo de Deus não é uma pilha de pedra, mas a santa Cristandade (1Co 3,17) na qual ele deve governar. Portanto, se a Cristandade está sob o papado, então verdadeiramente [a Cristandade] deve ser o Corpo e membro de Cristo. Se é o seu Corpo, então ela tem o Espírito, o Evangelho, a fé, o Batismo, o Sacramento, as Chaves, o ofício da pregação, a oração, a Escritura Sagrada, e todas as coisas que a Cristandade deve ter. Nós também ainda estamos sob o papado e temos esses dons cristãos dele. Mas [o papa] nos persegue, amaldiçoa, excomunga, proíbe, queima, mata, e lida com nós pobres cristãos como o verdadeiro Anticristo deve ameaçar os cristãos.

Mas tais cristãos devem ser corretamente batizados e membros sinceros de Cristo; de outra forma, não poderiam obter a vitória contra o Anticristo pelo martírio. Portanto, não deliramos como fazem os espíritos fanáticos, de forma a rejeitar o que o papa possui. Pois então rejeitaríamos também a Igreja Cristã, o “templo de Deus”, junto com todas as bençãos que foram obtidas de Cristo. Contra isto contendemos que o papa não quer continuar apenas com os dons da Cristandade que ele herdou dos apóstolos, mas ele acrescenta a eles suas próprias adições diabólicas e muito mais, e não usa os dons para a edificação do templo de Deus, mas para a sua destruição, para que se considere seu comando [Gebot] e ordem [Ordnung] maiores que a ordem de Cristo. No entanto, a despeito dessa destruição, Cristo preserva sua Cristandade, assim como Ele preservou Ló em Sodoma, sobre os quais São Pedro também pregou em 2Pe 2,6-7, que ambos permaneciam juntos: o Anticristo se assenta no templo de Deus por meio da operação do demônio (2Ts 2:4,9), contudo, o templo de Deus é e permanece templo de Deus por meio da preservação [graciosa] de Cristo. Se o papa pode tolerar e aceitar isto, minha “hipocrisia”, então certamente eu serei seu filho obediente e um piedoso papista. Eu realmente ficaria feliz, e voltaria atrás com tudo com que feri seus sentimentos. Portanto, os anabatistas e fanáticos erram quando dizem que qualquer coisa que o papa tenha está errada, ou dizendo porque isso ou aquilo acontece sob o papado, deveríamos agir diferente. É como se eles quisessem provar-se ávidos inimigos do Anticristo, mas não enxergam que agindo assim eles o fortalecem grandemente, enquanto paulatinamente enfraquecem a Cristandade e enganam a si mesmos. Eles deveriam nos ajudar a rejeitar os abusos e adições [do papa], mas com isso não obteriam qualquer glória especial, visto que eles percebem que não podem ser os primeiros neste assunto. Portanto, eles atacam o que ninguém atacou para que possam ser os primeiros a fazer isto e reivindicar a honra por tal atitude.

Mas essa honra deve se tornar em vergonha, pois eles atacam o templo de Deus e erram o Anticristo que se assenta nele; eles são como cegos que procuram por água, mas colocam suas mãos no fogo. Certamente, eles fazem como um irmão fez ao outro na Floresta Turingiana: eles caminhavam juntos em meios as árvores quando subitamente um urso os atacou e lançou um deles debaixo de seu corpo. O outro, querendo ajudar seu irmão, apunhalou o urso, mas o errou e miseravelmente perfurou o irmão que estava por baixo do urso.

Os fanáticos fazem o mesmo. Eles deveriam ajudar a pobre Cristandade, que o Anticristo tem em seu poder e torturas, e se opor duramente ao papa; mas nisto eles falham e assassinam ainda mais miseravelmente a pobre Cristandade sob o papa. Pois se eles deixassem intactos o Batismo e o Sacramento [a Ceia do Senhor], as almas dos cristãos sob o papa poderiam ainda escapar e serem salvas, como aconteceu até agora. Mas visto que agora os Sacramentos são tirados deles, indubitavelmente se perderão, uma vez que com isto o próprio Cristo lhes é tirado. Meu caro amigo, esta não é a maneira de bater no papa, pois os santos de Cristo estão sob ele. Isto requer um espírito cauteloso, modesto, que deixe de pé o templo de Deus e se oponha às adições pelas quais [o papa] destrói o templo de Deus.

Dr. Martinho Lutero, Concerning Rebaptism, 1528; Halle 17:2646-50.

Considerações

São textos como esse que revelam como o protestantismo em geral se afastou de Lutero e da Reforma Evangélica. E a raiz deste afastamento é o que Lutero chama de entusiasmo – a descrença e o desprezo dos meios de graça. Os protestantes em geral desconhecem o fato de que o motivo pelo qual Lutero teve a coragem de seguir separado da Sé de Roma é o mesmo pelo qual ele morreu afirmando coisas como “o papado tem a verdadeira cristandade“, ou seja, a sua confiança inabalável nos meios de graça, confiança esta que já não se encontrava na Sé de Roma e muito menos entre as seitas reformistas. Na verdade, este é o ponto de Lutero nos Artigos de Esmalcalde: ambos os grupos, papistas (como ele os chamava carinhosamente) e fanáticos, eram, apesar de suas diferenças, todos entusiastas.

Afirmar a nulidade do batismo infantil, fazendo-o depender de uma profissão de fé é perverter toda a lógica evangélica por trás do sacramento, assunto que já tratamos em outro lugar. Mas o que é ainda mais incompreensível é a atitude de comunidades protestantes pedobatistas que consideram nulo um batismo feito com água e plenamente trinitário. Tal atitude não deve ser rejeitada só porque contraria TODA a história da Igreja Cristã, mas porque despreza e invalida a graça de Deus no Santo Batismo, que não depende da nossa ortodoxia, do nosso compromisso doutrinário, mas somente da sua vontade santa e infalível. Toda criança batizada é lavada pelo lavar regenerador do Espírito Santo (Tito 3,5), mesmo numa igreja heterodoxa, mesmo entre hereges. O fato de esta criança mais tarde vir a crer em heresias e perder a fé, não é demérito do batismo realizado, mas do seu pecado. Há um só batismo (Ef 4,5).

Um caso que nos chama a atenção pela completa incoerência é a prática da Igreja Presbiteriana do Brasil, que afirma em suas confissões e resoluções do seu Supremo Concílio que: (1) o papa é o Anticristo e (2) a Igreja Católica Romana não é uma igreja cristã. Eis a questão! Se o Anticristo é aquele que se assenta no templo de Deus, e a igreja católica romana não é uma igreja de Deus (ou cristã), então certamente o Anticristo deve estar em outro lugar, que não a ICAR. Isto se chama fanatismo, e nada tem a ver com a Doctrina Evangelii ensinada na Reforma. Devemos rejeitar tal atitude porque a longo prazo este desprezo pelos sacramentos tem levado multidões para incerteza quanto aos meios que o próprio Deus estabeleceu, e assim encaminhando-as para uma necessidade doentia de experiências sentimentais/espirituais provocadas por grandes oradores e pregadores, momentos worship, ou de outro lado numa intelectualização do mistério da Fé – com cultos que se parecem mais com uma sala de aula. O resultado é sempre o mesmo: descrença e desconfiança para com os meios de graça. Querem matar o Anticristo, mas matam o povo que outrora esteve sob ele.

Tolle, lege!