Como Lutero e os teólogos evangélicos consideravam as comunidades “calvinistas”?

Em primeiro lugar, gostaria de pedir que o meu leitor que veio aqui atrás de polêmica, que reconsidere fechar a aba e procurar qualquer outro texto para ler. Meu intuito aqui não é o de difamar, caluniar ou denegrir os calvinistas de hoje ou do passado enquanto seguimento religioso. Antes, o meu único objetivo é dar provas históricas do que Lutero e a Igreja Evangélica (Luterana) sempre confessaram sobre as comunidades “calvinistas”.

Em segundo lugar, gostaria de chamar a atenção do leitor para o termo “calvinistas” colocado propositalmente entre aspas. Pois Lutero jamais conhecera uma igreja formalmente calvinista. O termo “calvinista”, diferente do termo “luterano”, só ganharia popularidade alguns bons anos após a morte de Lutero. O próprio Calvino em seus primeiros anos depois de ter aderido ao movimento reformista, se identificava como “luterano”. Daí a futilidade de emitir constatações históricas eclesiológicas e teológicas baseadas em cartas e tratamentos cordiais entre Lutero e Calvino. No entanto, o termo “calvinista” aparece mais tarde uma única vez no último grande documento confessional das Igrejas Evangélicas (luteranas): a Fórmula de Concórdia (Epítome – VIII, I). Ali os calvinistas são condenados por ensinar uma cristologia heterodoxa, contrária aos ensinos dos padres gregos e latinos e do Dr. Lutero.

1 – Condenação Formal vs Condenação Material

Antes de mais nada, é necessário distinguir entre condenação formal e condenação material. Nos escritos dos teólogos evangélicos, incluindo a Fórmula de Concórdia, encontramos uma condenação formaliter et materialiter dos calvinistas. Todavia, posto que ainda não havia nenhum calvinista nos tempos do Dr. Lutero, só encontramos nele condenações materiais que poderiam ser (e de fato foram) usadas para condenar os calvinistas.

O meu leitor apressado poderia objetar: “mas Lutero elogiou Calvino”. Creio que isto já foi respondido acima, mas torno a repetir que Calvino era conhecido como luterano, e não como zwingliano ou qualquer coisa do tipo. Uma melhor objeção envolveria os elogios que Melanchthon faz à Calvino. Pois bem! De fato, Melanchthon não só apreciava Calvino, mas como também conhecia a sua teologia sacramental, e mais tarde chegou a concordar com ela. Tanto é verdade que Calvino, por intermédio de Melanchthon, enviara uma carta confessando sua fé para Lutero, e que nunca chegou às mãos de Lutero (curioso!). A verdade é que Melanchthon se mostrou deveras inconstante após a morte de Lutero, causando suspeita entre os seus próprios alunos (que responderam o seu próprio professor na Fórmula de Concórdia). Mas esta inconstância não se evidenciou apenas em relação ao calvinismo, mas também em relação aos papistas e ao que poderíamos chamar de teologia sinergista (Melanchthon inclui a vontade do ser humano como causa de sua própria conversão, fato que não passou despercebido na época). Enfim, Melanchthon acabou se mostrando em seus últimos dias tão calvinista quanto sincretista. Se por um lado ele estava disposto a aderir a uma teologia sacramental calvinista, por outro ele também estava disposto a reinserir práticas e ritos papistas nas igrejas da Reforma. E por fim, acabou esboçando uma teologia do livre arbítrio que seria fortemente repudiada pelos calvinistas. Melanchthon se mostrou tão inconstante, que o próprio Calvino o adverte sobre suas concessões em favor dos papistas:

Minha dor me deixa quase sem palavras. Como os inimigos de Cristo desfrutam de seus conflitos com os Magdeburguers está claro nas zombarias deles. Permita-me adverti-lo livremente como um verdadeiro amigo. Gostaria de aprovar todas as suas ações. Mas agora eu o acuso diante de sua própria face. Esta é a soma de tua defesa: se a pureza da doutrina for mantida, as coisas externas não devem ser pertinazmente defendidas. Algumas delas conflitam claramente com a Palavra de Deus. Agora, desde que o Senhor nos atraiu para a luta, cabe-nos lutar ainda mais com os homens. Você sabe que sua posição difere da multidão. A hesitação do general ou do líder é mais desgraciosa do que a fuga de um regimento inteiro de soldados comuns.

F. Bente, Concordia Triglotta, Historical Introductions to the Symbolical Books of the Evangelical Lutheran Church, St. Louis: Concordia Publishing House, 1921, p.101.

Diante do que foi exposto acima, não quero dar a impressão de que Melanchthon era um sujeito perverso ou falsário. Ele de fato agiu com fraqueza e inconstância, mas haviam fortes motivos para isto: ele temia o exército do imperador, o Papa e o avanço dos turcos. Ele temia a violência e a destruição completa da cristandade por conflitos internos e externos. Melanchthon não era como Lutero. Ele não havia se convertido por uma experiência de morte, ele não lutara com o demônio diariamente, não estava preparado para confessar sua fé em face da morte, tal como fez Lutero. Não, ele era um cristão humanista, apaixonado pelas artes liberais, e que viu na Reforma um entendimento mais claro e preciso da Palavra de Deus e do Evangelho.

2 – A Condenação Material do Calvinismo nos Escritos de Lutero

2.1 – Sobre a Perseverança dos Santos:

A doutrina materialmente ensinada por Calvino e todos os seus seguidores, que mais tarde seria mais formalmente ensinada nos Cânones de Dordt, popularmente conhecida como “A Perseverança dos Santos” foi materialmente condenada por Lutero num escrito dogmático (Os Artigos de Esmalcalde) e com duras palavras:

Por outro lado, é possível que venham alguns espíritos sectários […] e sustentem a seguinte opinião: Todos aqueles que em algum momento receberam o Espírito ou o perdão dos pecados, ou que em algum momento se tornaram crentes, esses, caso pequem depois disso, mesmo assim permanecerão na fé, e tal pecado não lhes fará mal. E, de acordo com isso, berram: “Faça o que bem quiser; se você crê, então nada importa; a fé extingue todo pecado” etc. Dizem além disso, que aquele que peca depois de receber a fé e o Espírito nunca teve de modo verdadeiro o Espírito e a fé. Já me apareceram muitas dessas criaturas insanas, e temo que esse demônio ainda esteja alojado em alguns.

Dr. Martinho Lutero, Os Artigos de Esmalcalde, Terceira parte – III, 42.

Perceba que Lutero não está respondendo propriamente nenhum calvinista aqui. Ele está lidando com João Agrícola e seus seguidores. No entanto, ele condena e chama de sectários aqueles que ensinam que não existe apostasia verdadeira da fé. Ou que a fé e o Espírito coexistem com o pecado contra a consciência (pecado mortal). Ou seja, materialmente falando, ele está condenando uma doutrina que seria ensinada fundamentalmente pelos calvinistas.

2.2 – Sobre a Presença Real do Corpo e Sangue de Cristo na Santa Ceia:

Em 1549, João Calvino subscreve a forma final de sua teologia sacramental no chamado Consensus Tigurinus ou Consenso de Zurique. Ali é dito “Abesse Christi corpus et sanguinem a signis tanto intervallo dicimus, quanto abest terra ab altissimis coelis” [“Dizemos que o corpo e sangue de Cristo estão afastados dos sinais quanto a terra está afastada e distante dos mais altos céus”].

Declarações como esta do Consenso de Zurique, e que abundam nas Institutas da Religião Cristã de João Calvino, foram literalmente profetizadas pelo Dr. Lutero e já de antemão por ele condenadas em tais palavras:

Por ver que seitas e erros crescem à medida que passa o tempo, e que a fúria e raiva de Satanás não cessam, e afim de que, enquanto eu ainda estiver vivo ou depois da minha morte, não suceda que futuramente alguns se valham de mim e falsamente recorram aos meus escritos para confirmar o erro deles, como os sacramentários e anabatistas já estão começando a fazer, quero, com o presente escrito, confessar a minha fé, ponto por ponto, diante de Deus e do mundo todo. É minha intenção permanecer nesta fé até a morte, e nesta fé (que Deus me ajude!) partir deste mundo e comparecer perante o tribunal de nosso Senhor Jesus Cristo. É possível que, depois da minha morte, alguém diga: Se o Dr. Lutero fosse vivo, ensinaria e pensaria de maneira diferente a respeito deste ou daquele artigo, porque não refletiu suficientemente a respeito dele etc. Contra isso digo agora como eu disse no passado, e o que eu disse no passado é o que repito agora: com a graça de Deus, tenho refletido com a máxima diligência sobre todos esses artigos por meio das Escrituras, com elas voltei a examinar esses artigos muitas vezes, e tão seguramente os defenderia quanto agora tenho defendido o sacramento do altar. Não estou bêbado, nem falo sem refletir. Sei o que estou dizendo e bem compreendo o que isso representa para mim na vinda de Cristo, o Senhor, por ocasião do juízo final. Razão por que não quero que se interprete isso aí como piada ou conversa sem maior importância. Para mim isto é coisa séria, porque, graças a Deus, tenho conhecimento considerável de Satanás. Se ele consegue perverter e embaralhar a palavra de Deus, o que não será capaz de fazer com as minhas palavras ou as palavras de outra pessoa?

Cf. Da Ceia de Cristo – Confissão (1528), em OSel 4,367-568.

E continua:

Da mesma forma também falo e confesso do sacramento do altar que, nele, o corpo e sangue de verdade são comidos e bebidos com a boca no pão e no vinho, ainda que os sacerdotes que o administram ou aqueles que o recebem não creiam ou, de outro modo, façam mau uso dele. Pois o sacramento do altar não se fundamenta em fé ou incredulidade humanas, e sim na palavra e ordem de Deus. A menos que modifiquem primeiro a palavra e ordem de Deus e as interpretem de maneira diferente, como fazem os atuais inimigos do sacramento. Esses, na verdade, têm mero pão e vinho, visto que também não têm a palavra e ordem instituída de Deus, mas as perverteram e modificaram segundo sua própria imaginação.

Cf. Lutero, Da Ceia de Cristo – Confissão (1528), em OSel 4,372

Lutero aqui já não estava lidando apenas com Zwingli, por isso ele chama seus oponentes de “sacramentários”, e não deixa brecha para um fraseado vazio, quando ele diz que o “corpo e sangue de verdade são comidos e bebidos com a boca“. E chama as igrejas daqueles que negam esta doutrina de seitas. E não se trata de um excesso retórico. Lutero realmente acreditava nisto. Ele negou a destra da comunhão para Zwingli, e Martin Bucer só pôde comungar pelas mãos de um ministro luterano quando este confessou nos “Artigos de Concórdia Cristã, entre Teólogos Saxônios e os do Sul da Alemanha” que “com o pão e o vinho, o corpo e o sangue de Cristo estão verdadeira e essencialmente presentes, são oferecidos e recebidos. […] pela união sacramental, o pão é o corpo de Cristo” (se esta confissão foi sincera ou não, este juízo extrapola a historiografia). Não temos nenhuma razão para duvidar que Lutero faria o mesmo com Calvino. Não temos nenhuma razão para duvidar que Lutero consideraria qualquer igreja calvinista como uma seita, ou em termos mais modernos, uma igreja impura, ou ainda, uma igreja heterodoxa, tanto ou até mais que a Igreja de Roma.

Na verdade – aqui sim temos um argumento menos dogmático – Lutero parecia ver mais erro e heresia nas igrejas protestantes do que na Igreja de Roma, chegando a dizer abertamente que ele preferia mil vezes crer na transubstanciação do que negar a presença do corpo e sangue de Cristo no Sacramento do Altar. Veja:

[…] sobre a negação da crença histórica da presença física de Jesus na Eucaristia pelos reformados, Lutero disse: antes beber sangue com o Papa que somente vinho com os fanáticos. Sobre Zuínglio, líder dos reformados antes de Calvino: [ele é] sete vezes mais perigoso agora [como protestante] que quando era um papista. Também disse a Karlstadt, líder entusiasta, que ele – mas também os seguidores – parecia ter engolido engolido o Espírito Santo com pomba e tudo

Daniel Artur Branco, Justificação: O Núcleo da Fé Cristã, Editora Teophilus 2021, p.66.s

2.3 – Sobre as Cartas de Lutero a/sobre Calvino:

Devo agradecer aqui ao Rev. Moacyr Alves, pastor de nossa Igreja, que atualmente atua na República do Congo, e que traduziu do latim para o português dois trechos de duas cartas de Lutero mais tardias (1540), nas quais o Dr. Lutero reprova João Calvino. Sendo assim, podemos dizer que houve sim uma condenação mais do que material. Segue abaixo as duas citações cedidas pelo Rev. Moacyr:

Isto é horrendo! Calvino é um homem douto, mas profundamente suspeito do erro dos sacramentários. Oh, querido Deus, proteja-nos com tua palavra!

Dr. Martinho Lutero, WA TR 5, 461, 6050

Quanto a Calvino, ele esconde a doutrina sacramentária em suas frases. Ele está louco e não sabe se expressar, pois a verdade é simples. Eles não leram muito meus livros.

Dr. Martinho Lutero, WA TR 5, 51, 5303

3. A Condenação Formal do Calvinismo nas Confissões Evangélicas e nos Escritos dos Teólogos Evangélicos:

Como foi dito acima, a Fórmula de Concórdia cita os calvinistas uma única vez, especificamente na Epítome VIII,I. E depois de concluir a Epítome, a Declaração Sólida afirma: “rejeitamos e condenamos todas as seitas e heresias que são rejeitadas nos escritos mencionados acima [na Epítome]”. Ou seja, a Igreja Evangélica é desde o início estabelecida confessando que as comunidades calvinistas são seitas. Isto é uma declaração formal. Mas toda a Declaração Sólida está cheia de condenações materiais fortíssimas, como no artigo sobre Lei e Evangelho e no artigo sobre a Eleição de Deus.

É importante ressaltar que esta confissão não ficou apenas no papel. As Igrejas Evangélicas nunca concederam comunhão de púlpito e altar para calvinistas até o século XVIII, quando o pietismo, o uninoismo e o racionalismo começaram adentrar nessas igrejas. Mas logo no século XIX, com o reavivamento do interesse nas Confissões Evangélicas, novamente esta prática foi abolida entre os nossos. E hoje, as nossas igrejas continuam com o mesmo entendimento. Este é o entendimento da Lutheran Church Missouri Synod (LCMS), é o entendimento da Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB), da qual faço parte, e é o entendimento de todas as igrejas já formalmente reconhecidas no International Lutheran Council (ILC). A comunhão de púlpito e altar assinala que reconhecemos uns aos outros como a verdadeira Igreja Visível de Cristo – o que não quer dizer que a igreja oculta – a comunhão dos santos – também não se faça presente nas seitas calvinistas ou no papado. Pelo contrário, quanto mais luteranos somos neste ponto, mais somos obrigados a reconhecer que Cristo continua salvando por meio da Palavra e dos Sacramentos também nestes corpos eclesiásticos heterodoxos.

Dessa forma, o nosso ensino nos permite reconhecer o poder salvífico de Deus nas comunidades heterodoxas, ao mesmo tempo em que nos capacita a criticá-los duramente, como fizeram todos os teólogos evangélicos até o presente momento. É o exemplo de Philipp Nicolai, que logo em 1586 escrevera as seguintes obras: “Exposição dos Fundamentos da Seita Calvinista tidos em comum com os antigos arianos e nestorianos“, o famoso “Fundamentorum Calvinianae Sectae detectio“. Outra vez em 1599 ele escreveu “O Reflexo do Espírito Maligno presente nos Livros dos Calvinistas” (Spiegel des bösen Geistes / der sich in den Calvinisten Büchern reget…). Jakob Heilbrunner (1548-1618) chega a afirmar: “Não devemos reconhecer os calvinistas como nossos irmãos […] [Isto] não digo em relação aos cristãos comuns que erram por simplicidade ou falta de instrução melhor, que talvez creiam em seus corações muito melhor e mais sinceramente que os seus mestres”. (Synopsis doctr. Calvin: Summarischer Begriff und gegründ. Widerl. der Zwingl. und Calv. Lehre, p.140a). Valentin Ernst Loescher (1709) também adverte: “Reconhecemos os calvinistas-reformados como uma parte irregular da igreja universal e como um corpo eclesiástico muito corrupto com o qual não devemos praticar comunhão de culto, e nem celebrar a Ceia do Senhor“. (Unschuldige Nachnchten von alten und neuen theologischen Sachen, [Wittenberg und Leipizg, 1709], p.293). Interessante notar também como Walther emprega os termos ao relatar um caso de um ministro luterano que (de maneira equivocada) se recusou a batizar o filho de um homem que “apostatou para os calvinistas” (C.F.W. Walther, The Form of a Christian Congregation, III, F. Parte Seis, parágrafo 54). Ou seja, para ele, deixar uma igreja evangélica e entrar para uma comunidade calvinista, era sim um tipo de apostasia.

Conclusão

Há poucos dias atrás eu apenas comentei de passagem em meu facebook sobre este aspecto de nossa eclesiologia, que não é denominacionalista. Nós não somos e não temos denominações. Calvinistas têm denominações. Se lemos a lista de corpos eclesiásticos no site da Comunidade Reformada Mundial, encontraremos ali centenas de comunidades religiosas com centenas de doutrinas e práticas diversas, que mutuamente se reconhecem. Eles não se preocupam com o fato de que só existe uma única verdade, um único batismo, uma única fé. Por escrever muito menos do que agora escrevo aqui depois de todo trabalho acima, recebi algumas dezenas de comentários raivosos e xingamentos de toda espécie (um rage calvinista! haha). No entanto, um fato me chamou a atenção: a mesma doutrina luterana por mim “exposta” não incomodou católicos romanos e ortodoxos que leram o que escrevi. Só depois de conversar com um dos pastores da minha Igreja é que entendi porque os calvinistas reagiram tão negativamente à minha postagem: o denominacionalismo é uma característica única dos calvinistas e dos demais evangelicais que deles vieram. Todas as outras antigas tradições cristãs também mantêm uma perspectiva eclesiológica semelhante a nossa.

Tolle lege!

Por que a Reforma rejeitou o Credobatismo?

Seria o batismo infantil o bezerro de ouro da Reforma? Símbolo da fraqueza e do receio de Lutero e dos outros Reformadores em não abandonarem um antigo costume católico romano? Estas são acusações comuns no meio batista e evangelical em geral, e que, ao meu ver, fazem muito sentido a depender do que entendemos por “Reforma”. Se por Reforma, nos referimos a todos os movimentos reformistas que surgiram a partir do século XVI, incluindo o calvinismo; daí o questionamento batista-evangelical faz todo sentido. Tais movimentos não partem de um núcleo teológico-filosófico central ao redor do qual todo o projeto reformista se estrutura. Neste caso, a própria reforma é um fim em si mesmo, daí o famoso mote calvinista “ecclesia reformata semper reformanda est“. Por outro lado, se por “Reforma” nos referimos ao trabalho do Venerável Doutor Martinho Lutero e dos outros Confessores, daí a rejeição do credobatismo não só faz sentido, mas deve ser entendida como um elemento indispensável para a Reforma. Para o Dr. Lutero e toda a Igreja da Confissão de Augsburg, o credobatismo representava uma ameaça real ao Evangelho – especificamente ao Sola Fide e à correta distinção entre Lei e Evangelho.

Para melhor explicar este ponto, deixo aqui alguns excertos da obra “A teologia de Martinho Lutero” de Paul Althaus – um dos maiores especialistas em Lutero do século XX:

Lutero não só defendeu a validade do batismo infantil contra os ataques dos anabatistas, mas também atacou sua prática batismal e, à base do Evangelho, mostrou que tal prática era impossível.

Paul Althaus, A teologia de Martinho Lutero, Ulbra 2008, p.387.

A partir desta constatação Paul Althaus mostra que haviam dois grandes motivos pelos quais a proposta credobatista dos anabatistas conflitava diretamente com o Evangelho:

Primeiro: fazendo o batismo depender da fé da pessoa a ser batizada, permanecemos sempre na incerteza sobre o direito de batizar alguém. Porque nunca podemos saber com certeza se o candidato ao batismo realmente crê. Não há um sinal indubitável de tal fé, nem sequer sua vinda ao batismo e sua confissão de fé. A posição dos batistas não tem uma base certa, e eles agem por isso sobre a incerteza. Isso, porém, é pecado. Algumas citações [de Lutero]: “Será que eles se tornaram deuses, que assim podem discernir os corações e saber quem crê ou quem não crê?” “Os anabatistas não podem ter certeza de que seu rebatizar é válido. Pois seu rebatizar pressupõe que a pessoa crê. Eles nunca podem ter certeza de tal fé, por isso seu rebatizar é um ato incerto. Mas agir em coisas espirituais na incerteza e dúvida é pecado e tentar a Deus“. Quem baseia o batismo na fé da pessoa a ser batizada não pode batizar ninguém.

Paul Althaus, A teologia de Martinho Lutero, Ulbra 2008, p.388.

A lógica nos argumentos acima é muito simples. Batistas rebatizam adultos que foram batizados na infância, pois eles pressupõem que este adulto não tinha fé no momento do batismo. Eis o problema: quem garante que agora este mesmo adulto possui fé verdadeira? Ninguém. E é por isso que os adventistas são menos incoerentes que os batistas, pois eles rebatizam todos os adultos que se desviaram da fé e desejam voltar à comunhão da igreja – ainda que já tenham sido batizados após profissão de fé. Qual a lógica adventista? A mesma dos batistas. Eles pressupõem que não havia fé verdadeira no momento do batismo anterior.

Perceba o que está acontecendo aqui: saimos de uma sacramentologia cuja ênfase estava no objeto da fé oferecido a nós por meios externos, isto é, fora de nós (extra nos); e entramos numa sacramentologia cuja ênfase está na fé em si mesma. O resultado é que transformamos a fé em obras. Aqui a fé deixou de ser um orgão receptor, deixou de ter um papel passivo na salvação, e se tornou uma obra meritória, porque agora a confiança para administrar o batismo repousa sobre a fé. Sendo assim, é compreensível que para Lutero, sair da mão do Papa para cair na mão dos anabatistas era como que trocar seis por meia dúzia, na medida em que ambos semeavam a dúvida no coração das pessoas.

Paul Althaus segue explicando toda a questão envolvendo o Evangelho:

Segundo, batizar e deixar-se batizar à base da própria fé não só torna o batismo incerto, mas também é idólatra. Dessa forma, fazendo o batismo depender da fé, faço da fé uma obra. Assim, a prática do batismo não é outra coisa do que uma nova obra para justificação. Eles falam da fé, mas não enfatizam de fato a atividade e a obra. Isto é, na verdade, o diabo que promove entre eles a confiança em obras. Ele finge fé, quando na verdade tem obras na mente. Ele leva, sob o nome e a máscara da fé, o pobre povo a confiar numa obra. Os batistas querem reduzir o batismo e Santa Ceia, “que são a palavra e instituição de Deus, em uma mera obra humana… Eles não querem ser santificados pelo batismo, mas querem tornar o batismo bom e santo através de sua piedade”. Eles negam o caráter do batismo como a comunicação da graça de Cristo que, sozinha, nos torna santos e, ao contrário disso, eles mesmos querem tornar-se santos antes do batismo. Com isso, reduzem o batismo a um sinal desnecessário que os identifica como povo piedoso.

Paul Althaus, A teologia de Martinho Lutero, Ulbra 2008, p.388-89.

Se por um lado, o credobatismo milita contra o Sola Fide, na medida em que faz da Fé um tipo de obra meritória na qual o cristão deve confiar; por outro, ele também confunde Lei e Evangelho. Nosso Senhor diz “Quem crê e for batizado será salvo“, colocando o batismo ao lado da Fé, afim de mostrar que esta doutrina (do Batismo) pertence ao Evangelho, e não à Lei. E o que dizem os credobatistas? Que o Batismo é para aqueles que já são santos, que já foram lavados – daí a sua insistência com o termo “ordenança” em relação ao batismo. Se para Nosso Senhor, o Batismo está vinculado ao Evangelho, ao perdão dos pecados, para eles, o batismo diz respeito antes à Lei, à obediência a uma ordenança.

O próprio Doutor Lutero ensina:

É verdade que devemos crer quando somos batizados, mas não devemos receber o batismo porque cremos. Uma coisa é ter fé, e algo completamente diferente é fiar-se em tal fé e deixar-se batizar em vista dela.

Dr. Martinho Lutero, WA 26,165; LW 40,252.

Confiar em Cristo é ter Fé. Confiar na Fé é idolatria. Paul Althaus também chama atenção para esta condenação específica nos escritos de Lutero:

Ser batizado pela segunda vez, porque a pessoa rejeita o batismo infantil, a existência cristã e a justiça que vem o batismo dá, considerando isso “inadequado”, significa que o passar da justificação pela fé para a justificação pelas obras foi feito. Pois em tudo isso, o segundo batismo é colocado como uma “justiça melhor”. […] A preocupação de Lutero com a pureza da justificação pela fé é a razão última de sua rejeição do rebatizar e oposição de substituir o batismo infantil pelo amplamente requerido batismo de adultos.

Paul Althaus, A teologia de Martinho Lutero, Ulbra 2008, p.390-91.

Voltando ao ponto inicial, podemos concluir dizendo que para Lutero é totalmente irrelevante a presença ou não de exemplos de crianças sendo batizadas nas narrativas bíblicas. Exigir tais exemplos obedece à lógica biblicista zwingliana, calvinista e mais tarde puritana. Mas a Igreja de Deus nunca seguiu este método, muito menos Lutero e os Reformadores. O que interessava para eles era se o batismo infantil conflitava ou se harmonizava com a Palavra de Deus (Evangelho), e o que Lutero percebeu é que o credobatismo falha miseravelmente com tudo aquilo que a Palavra de Deus ensina sobre o Batismo e a salvação. Ele milita contra o Sola Fide e contra a correta distinção entre Lei e Evangelho. Logo, ele é uma impossibilidade à luz do Evangelho, que é o centro teológico ao redor do qual a Reforma se estrutura.

FINIS

Qual o problema do Nominalismo?

Em seu mais novo livro, Union with Christ, Jordan Cooper procura identificar algumas influências filosóficas que prejudicaram em muito o labor teológico no meio luterano nos últimos três séculos. Depois do abandono do método escolástico que caracterizou toda a era da Ortodoxia Luterana, muitas ideias em níveis de pressupostos – diga-se de passagem, incompatíveis com o luteranismo confessional – mitigaram pouco a pouco tanto a nossa linguagem teológica quanto o próprio conteúdo da nossa fé, como é o caso da doutrina da União com Cristo. Uma dessas estranhas ideias filosóficas é o Nominalismo. Vejamos o que o Dr. Jordan Cooper nos diz sobre o nominalismo e sua incompatibilidade com a fé cristã, e, sobretudo, com o luteranismo confessional:

O Nominalismo como ideologia já existia antes de Tomás de Aquino, mas não era a perspectiva favorita. Pedro Abelardo […] já havia questionado a existência de universais como qualquer coisa real. Em vez disso, ele acreditava que os universais eram designações linguísticas, usadas pelos seres humanos para categorizar várias coisas em categorias unificantes. Seu contemporâneo Roscellinus, foi até mais explícito em sua rejeição das essências [do essencialismo], preferindo falar apenas de objetos individuais. Isso resultou em acusações de heresia em sua doutrina de Deus, onde Roscellinus falava sobre três essências distintas do Pai, do Filho e do Espírito Santo, resultando numa forma de triteísmo. Sem uma essência universal (tal como uma divindade), não pode haver em qualquer sentido real uma natureza compartilhada entre as três pessoas. Isso demonstra que diferentes convicções sobre estas questões resultam em desvios teológicos. O pensador mais popular a argumentar contra o realismo tanto em sua forma platônica quanto em sua forma aristotélica, foi William de Ockham. Este pensador popularizou o que é comumente conhecido como “a navalha de Ockham”, que é o princípio de que se deve construir um argumento com tão poucos pressupostos quanto possível. Com isso em vista, Ockham simplesmente não via a necessidade de essências compartilhadas. Todavia, ele mesmo rejeita as formas mais extremas de nominalismo que se encontram em figuras como Roscellinus, argumentando que pode-se dizer num sentido que essências são reais, mas apenas conceitualmente. É por isso que sua perspectiva por vezes é chamada de conceitualismo. A mente humana usa categorias unificantes para entender e explicar o mundo externo. Enquanto alguns têm visto isto como uma posição mediadora entre o realismo e o nominalismo, a perspectiva de Ockham simplesmente muda a categoria na qual as essências são criadas, de uma linguística para uma mental, deixando-o assim na mesma posição fundamental que os nominalistas anteriores.

Seguindo a Reforma, os escolásticos protestantes utilizaram as categorias do realismo, em vez de as do nominalismo ou conceitualismo. Isto é claro nas declarações de Chemnitz, Gerhard e da Fórmula de Concórdia citadas anteriormente. Conforme discutidas no primeiro volume dessa série, as vezes a linguagem usada é aristotélica, e outras vezes é neoplatônica, esta última refletindo os padres orientais. Seja qual for a forma de realismo que se sustente, é essencial que ela seja capaz de falar sobre uma substância humana num sentido geral para que a encarnação tenha qualquer conexão inerente com indivíduos particulares dentro desta classe. Cristo não está simplesmente linguisticamente relacionado com outras pessoas, nem a sua conexão com as outras pessoas é simplesmente conceitual. Ela é uma conexão objetiva, universal e ontológica. Historicamente falando, é com a perda do realismo que a encarnação deixa de ser um evento salvífico central para o pensamento protestante. A filosofia moderna, surgindo desde Descartes, sem dúvidas foi uma extensão do paradigma nominalista, levando à mudança da metafísica para a epistemologia. No realismo, conceitos na mente se relacionam com o mundo externo da experiência sensível, uma vez que a mente apreende uma essência na qual o objeto participa. Os universais garantem que a pessoa tenha um entendimento do que a realidade externa é. Com a perda do realismo, essa conexão foi cortada, e a “coisa-em-si-mesma” se tornou uma realidade inacessível à mente humana. Isto foi o que levou à mudança kantiana no pensamento teológico e filosófico expresso anteriormente¹.

Fica claro então que o realismo é uma necessidade se devemos ver a encarnação como um evento salvífico universal e objetivo. Sem ele não há nada que inerentemente conecte Cristo com uma verdadeira essência humana. Se este é o caso, a encarnação não pode resultar na cura da natureza humana, uma vez que não há nenhuma natureza humana real e compartilhada.

Jordan Cooper, Union with Christ: Salvationn as Participation, Just and Sinner Publications 2021, pp.96-97.

FINIS

[1] Cooper faz um panorama logo no início do livro, mostrando esta constante filosófica desde Ritschl, Karl Holl, Bultmann, até chegar em Gehard Forde, e em níveis de influências menores em Robert Kolb e Charles Arand.